Este não é um discurso político, um rasgo apoteótico brainstorming de um registo de ideias novas e inovadoras, longe disso!
Aos acólitos do 25 de Abril, não trará nada de novo, aos outros não servirá de nada. Mas há o direito ao grito, ao discurso fático, porque é Abril e contrariá-lo será sempre uma negação histórica na vida de Portugal e na vida das mulheres que, nos primórdios do séc. XX, não passavam de um ínfimo segmento da população, quase com apenas funções de procriar e respeitar a autoridade masculina.
Com direitos quase inexistentes, o seu lugar era em casa, a tratar das lides domésticas e a cuidar dos filhos. Pensar em tornar a mulher independente era uma afronta para a sociedade instituída. Por séculos, as mulheres foram colocadas num lugar de sobrevivência, tidas como seres inferiores e incapazes, por uma sociedade na qual o poder e o domínio era do patriarcado. Relegadas para os espaços domésticos, sem participação na vida política, pertencendo aos seus pais e maridos, praticamente ignóbeis e estúpidas, eram o reflexo do machismo e das interdições antes do 25 de Abril. Necessária era a autorização do marido para viajar; só em 1976 foi retirado ao homem o direito de violar a correspondência da mulher; mulher séria não andava à noite na rua sozinha; nem de biquíni na praia; na escola, a saia não podia fazer antever o joelho todo, só podia ir até meio. Mais, ao marido traído, cabia-lhe o direito também de matar a mulher se apanhada em flagrante de adultério, sendo este apenas desterrado para fora da comarca por seis meses. Assim ditava a aberração do artigo 372º do C.P de 1886.
Após Abril de 74, foi necessário combater não só os resquícios do regime autoritário anterior, mas, especialmente, a mentalidade geral vigente. As mulheres saíram à rua, protestaram e exigiram a igualdade de género. O 25 de abril trouxe a todas as mulheres portuguesas um novo grito de liberdade e afirmação. As mulheres ameaçaram, finalmente, sair da gaiola onde se encontravam, abandonaram o low profile a que estavam predestinadas, ergueram as suas bandeiras (algumas de muitas cores) e ecoaram o verdadeiro grito do Ipiranga!
Mas, que condições de vida têm tido as mulheres, nestes 50 anos de liberdade?
Em 1978, com a revisão do Código Civil, os direitos das mulheres tiveram um avanço significativo: há claramente um contexto de democratização da estrutura familiar, com vários reflexos: a mulher casada deixa de ter estatuto de dependência do marido. Desaparece a figura do “chefe de família” e as disposições que atribuíam aos homens a administração dos bens do casal. A residência do casal passou a ser decisão de ambos os cônjuges. A mulher deixou de deter apenas uma posição secundária em relação ao poder parental. O acesso das mulheres ao trabalho inicia-se em 1974 com novas oportunidades: cargos da carreira administrativa local, diplomática e magistratura. A Lei sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez é adotada em 2007, após dois referendos nacionais. A taxa de analfabetismo diminuiu significativamente e em 1974, pela primeira vez, as mulheres puderam votar (e serem eleitas) de forma universal e livre. O mundo do patriarcado mostrou o que mais o assusta: uma mulher com um livro! O acesso à informação como pressuposto da liberdade.
Claramente que o balanço da liberdade das mulheres, em 50 anos de democracia é positivo e espelhado por um progresso significativo nas suas condições de vida, desde logo inscrito na CRP.
Mas, nos 50 anos de democracia, apenas uma mulher ocupou o cargo de Primeiro-ministro (Mª de Lurdes Pintasilgo). Na esfera doméstica, o tempo diário nas tarefas continuam desiguais. Delegadas responsabilidades acrescidas, desigualdades laborais e salariais, ainda latentes. A paz no seio familiar e nas relações de intimidade isenta-se e a violência doméstica contra mulheres cresce nos últimos anos, sobretudo na terceira idade. Direitos, benefícios, participação diferenciada e uma lista ainda extensa para não nos fazer calar.
Temos uma liberdade em crise ou um episódio de liberdade?
O poder nos vários étimos, um deles é a negação da liberdade. Um regime ditatorial, autoritário e absoluto, nega direitos e liberdades, sobretudo às mulheres. Comungamos o regime democrático, constitucional e liberal. O desenvolvimento dos direitos humanos e da liberdade individual e das mulheres é uma liberdade que se afirma ao longo dos séculos contra estado absolutista e totalitário.
Mas será que queremos mesmo a liberdade? Ou aceitamos apenas a liberdade aparente?
No casco, não somos uma sociedade que quer a liberdade porque temos medo dela, da ruína da visão 360 dos nossos atos e em nome da própria liberdade, servimos ainda a ignorância que leva à servidão. A liberdade é insuportável. Como duas pessoas que se amam, mas não podem estar juntas porque não se suportam. É algo que o Homem tem dificuldade em suportar, implica escolhas e decisões para as quais muitas vezes não se encontra preparado.
A segurança e a liberdade, muitas vezes opostos duma mesma moeda, são uma relação ambivalente, que se encontra no intervalo entre uma forma de vida e outra, submergindo num vínculo: submissão-liberdade-submissão. Vivemos ainda na obsessão pela segurança, limitamos e manipulamos a liberdade, os espaços do medo estão ainda presentes e dissipam a verdadeira expressão.
Alguns dizem que Abril falhou. Eu não era nascida. Seja como for é a corrente do meu sangue que me delega direitos dos quais eu não sonhava a sua ausência. Eu não sei o que é não poder votar, não poder sair à noite sozinha, não poder ser livre, ou pseudo-livre, empiricamente não sei, mas no meu sangue corre Abril também.
O 25 de Abril é um copo meio cheio, meio vazio. Cada um vê como quer. Exalta-se a liberdade, vitupera-se o excesso dela. Parece-se com uma câmara ardente, tumultuada, cheia de deuses e demónios lá dentro.
Mas não podemos esquecer que Abril é um ato de esperança para as mulheres, não um ato de transmutação imediatista e miraculosa! A mudança não parte de um ato único e isolado afastando a responsabilidade do processo de construção de Abril, de todos, todos os dias.
Na luta pelos direitos humanos das mulheres e da igualdade, é preciso continuar a percorrer o caminho trilhado, não baixar os braços. Continuar a escrever a história desse imaginário coletivo feminino, desse sujeito-projecto em constante renovação. Precisamos lembrar que não estamos sozinhas e, nesse sentido, a representatividade pesa. As mulheres precisam continuar a encherem-se de coragem para alcançar os seus sonhos. Continuar a serem ambiciosas e por natureza descontentes com as suas conquistas. Ser a inspiração, inspirad@s por outr@s, porque Liberdade ainda é pouco!
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