Já tem mais de 30 anos de prática de especialidade de Oftalmologia e, no seu percurso, constam trabalhos no Serviço Nacional de Saúde e no sistema privado. Como avalia este seu percurso?
Na minha opinião não deveriam existir diferenças na acessibilidade e tratamento dos doentes entre os dois setores. Porém, nos dias de hoje encontramos duas diferenças incontornáveis: uma é a rapidez de resposta e a outra a possibilidade de escolha, quer do médico, quer a dificuldade do local de referenciação por parte do doente.
No que a mim diz respeito, atuei nos dois setores sempre duma forma perfeitamente clara e estanque. Até 2014, altura em que me aposentei da Função Pública, após 35 anos de Serviço, todas as manhãs e duas tardes trabalhei no Hospital de S. João e mais tarde no H. S. Sebastião, onde exerci as funções de Diretor de Serviço durante mais de 15 anos; nas restantes tardes trabalhava no setor privado. Por outro lado, embora sendo permitido, nunca exerci, por opção, medicina privada nos hospitais do SNS, nem nas proximidades das referidas instituições. Foi sempre a minha maior preocupação não tratar de forma diferente qualquer doente, quer ele fosse do SNS ou da minha clínica privada.
Gostaria ainda de referir que se por um lado a medicina privada pode ser altamente compensadora do ponto de vista monetário, organizacional e de diferenciação, o setor público foi para mim muitíssimo importante no que diz respeito à minha formação e no contacto com as novas tecnologias.
Porquê a escolha pela Oftalmologia?
Sempre desejei ser médico pelo fascínio e admiração que tinha pelo meu pai. Embora não tendo sido oftalmologista, ele foi para mim o exemplo de dedicação e respeito pelo próximo, como ser humano e como indivíduo fragilizado pelo sofrimento e pela doença.
A Oftalmologia atraiu-me por se tratar de uma especialidade, não só por possuir um componente médico fascinante como também pelo recurso à microcirurgia, que foi sempre uma atração muito especial. Desde o 4º ano do curso de Medicina, pelas mãos do Professor Castro Correia, iniciei os meus estudos sobre a anatomia e fisiologia do globo ocular e anexos; a partir daí a minha atividade docente, de investigação e clínica no âmbito da Oftalmologia não mais parou até aos dias de hoje.
O segmento anterior do globo ocular é uma das áreas da oftalmologia que considera fascinante. Porquê?
Desde o meu estágio de dois anos nos EUA fascina-me tudo o que diz respeito à tecnologia para o diagnóstico e às patologias médica e cirúrgica do segmento anterior, tais como a cirurgia da catarata e da córnea. Esta área cirúrgica é muito estimulante, pois possibilita que um doente com uma acuidade visual muito diminuída recupere a visão em apenas 24-48 horas.
Por outro lado, dispomos hoje em dia de uma grande variedade de opções que permitem corrigir, do ponto de vista médico-cirúrgico, a maioria dos erros refrativos existentes em qualquer idade, a partir dos 18-20 anos.
Que mudanças consegue notar na sua área de especialidade?
Durante os últimos 30 anos as mudanças foram inimagináveis, tanto em Oftalmologia como na Medicina em geral. Nos anos 80 procedíamos à realização de apresentações recorrendo a diapositivos preparados manualmente, à pesquisa bibliográfica apenas nas bibliotecas, e ao envio de toda a correspondência por correio tradicional.
No que diz respeito à Oftalmologia, lembro-me com saudade das cirurgias intracapsulares de catarata, com ou sem colocação de lente de câmara anterior e recordo os oito dias de internamento usual para qualquer doente operado.
Hoje, praticamente toda a cirurgia é realizada em ambulatório, o nível tecnológico é elevadíssimo em todos os setores e as taxas de sucesso são extraordinárias. Por outro lado, a cirurgia virtual e a inteligência artificial são uma realidade com a qual já lidamos diariamente e o recurso à robótica é inevitável e está muito mais próximo do que pensamos.
“hoje, praticamente toda a cirurgia é realizada em ambulatório, o nível tecnológico é elevadíssimo e as taxas de sucesso são extraordinárias”
Há 27 anos fundou a Clinsborges, a clínica da qual é diretor clínico e que foi desenhada à sua imagem. Fale-nos um pouco da evolução da clínica, no que respeita à introdução de novas especialidades.
A Clinsborges é um centro oftalmológico, localizado em plena baixa da cidade do Porto, especializado no diagnóstico e tratamento de uma variedade de doenças oculares. A clínica foi criada por mim em 1992 e, desde então, temos vindo a incorporar progressivamente novos elementos e a adquirir equipamento que permita efetuar uma abordagem correta e atualizada do doente com patologia do foro oftalmológico. Possuímos modernas e acolhedoras instalações e, há mais de 10 anos, damos especial relevância às novas tecnologias, tais como o processo clínico informatizado e a integração em rede dos diversos equipamentos de diagnóstico.
Na nossa clínica não só atendemos os doentes privados, como também colaboramos e temos acordos com os principais sistemas e grupos de seguradoras da área da saúde.
O “Olho Seco” é cada vez mais a doença oftalmológica do século XXI?
O “Olho Seco” é um verdadeiro problema de saúde pública: mais de 15 por cento dos adultos (cerca de um milhão e meio de portugueses) apresentam queixas de dor ou desconforto ocular na sequência desta condição. Neste contexto, podemos definir o olho seco como o desajuste entre a quantidade/qualidade da secreção lacrimal e as necessidades de lubrificação da superfície do olho.
Hoje em dia possuímos novas armas terapêuticas como o uso de anti-inflamatórios não esteroides, corticoides ou ciclosporina.
Novos tratamentos tais como a Luz Pulsada ou o Plasma Rico em Plaquetas (Endoret), são duas tecnologias recentes de que dispomos também para tratar situações de olho seco moderado ou grave.
“cerca de um milhão e meio de portugueses apresentam queixas de dor ou desconforto ocular na sequência desta condição [olho seco]
Para celebrar os 25 anos da clínica, criou o CIOS – Centro Integrado do Olho Seco. Esta centro, em parceria com Barcelona, veio suprir uma necessidade? Quais as funções do CIOS?
O CIOS pretende aproveitar toda a tecnologia existente na Clinsborges e fazer uma rede de tratamento do “olho seco” que permita obter uma abordagem global, nomeadamente através da ação de outras especialidades, como a psicologia e a parte nutricional, fundamentais para estes doentes. Consciente da alta incidência desta patologia na população e da falta de informação sobre esta doença, decidimos associar-nos a um centro de referência já existente além-fronteiras a “Área Oftalmológica Avanzada”, situada em Barcelona, e encabeçada por Carlos Vergés.
O principal objetivo foi contribuir para a disseminação de informação bem como organizar seminários e reuniões para elucidar a população acerca desta patologia tão prevalente em oftalmologia.
Antes do CIOS, tinha também desenvolvido uma parceria para a criação do Centro Integrado de Baixa Visão. Explique um pouco em que consiste este problema oftalmológico e a importância deste centro.
Na Clinsborges também criamos uma parceria entre saúde visual, alta tecnologia e apoio psicológico que se envolve com base em três valores: inclusão, informação e prevenção.
De uma oportunidade de trabalho conjunto e partilha de conhecimentos, constituímos no Porto o primeiro centro que visa melhorar a qualidade de vida dos cidadãos com visão reduzida, independentemente das suas necessidades, possibilidades e faixa etária.
Este apoio e integração passa por motivar os doentes a seguir os tratamentos e a indicar os procedimentos a tomar, assim como prestar apoio familiar. É muito importante combinar as várias abordagens: para além da abordagem médica/clínica e da tecnológica, a intervenção psicológica é fundamental para ajudar estes doentes na sua adaptação ao dia-a-dia.
Ao longo do seu percurso profissional, teve a oportunidade de ser, por várias vezes, diretor clínico, nomeadamente dos Hospitais da Boa Nova e de Dia da Maia e, neste momento, é o responsável pela especialidade de Oftalmologia do grupo Lenitudes. Que projeto diferenciador é este, dentro da área da Oftalmologia?
A Lenitudes é um centro que funcionou nos seus primeiros três anos de existência fundamentalmente vocacionado para a área da oncologia, quer no que respeita ao diagnóstico quer ao tratamento; desde o início do presente ano até agora têm vindo a ser integradas novas especialidades. O objetivo é que cada especialidade, nomeadamente a Oftalmologia, esteja dotada tanto do ponto de vista de diagnóstico como de tratamento, por forma a fazer-se uma abordagem global do paciente, não só de uma forma isolada, mas também integrada, como por exemplo com a Otorrinolaringologia, Cirurgia Plástica, Cirurgia Geral, Endocrinologia, Cirurgia Vascular, Neurologia, Neurocirurgia, entre outros.
A Lenitudes surge agora com um novo visual que contempla uma abordagem multidisciplinar. Até ao final do ano todas as especialidades que foram criadas e introduzidas irão trabalhar em conjunto para que o doente seja tratado de uma forma global e ainda com melhor qualidade.
Portugal está bem posicionado, a nível europeu, no que diz respeito ao desenvolvimento de pesquisas e soluções de tratamento. Que áreas faltam desenvolver?
Em Portugal os cuidados na área da saúde, nomeadamente na Oftalmologia estão ao nível do que melhor se faz a nível mundial, nos países mais desenvolvidos. Também no que diz respeito ao ensino e à investigação somos reconhecidos e frequentemente convidados pelos nossos pares para participar em inúmeros congressos e reuniões científicas internacionais.
O tratamento e o diagnóstico em áreas como por exemplo o glaucoma, a retina ou a cirurgia da catarata estão a par do realizado nos outros países. Julgo que é importante neste momento termos uma real informação sobre a incidência e a prevalência das patologias oftalmológicas mais frequentes e promover cuidados transversais a todos os portugueses quer eles estejam no litoral ou no interior do país.
“o tratamento e o diagnóstico em áreas como, por exemplo, o glaucoma, a retina ou a cirurgia da catarata estão a par do realizado nos outros países”
Quais são as doenças mais preocupantes e que se irão agravar nos próximos anos?
Cada vez a longevidade é maior, e assim devemos ter em conta que quer a retina quer outras estruturas oculares vão acompanhar o envelhecimento normal que surge no resto do organismo.
Tanto o glaucoma, a degenerescência macular relacionada com a idade ou mesmo as alterações oculares na diabetes fazem com que os olhos venham a sofrer de patologias que numa idade inferior não se registavam.
Por outro lado, o uso excessivo de aparelhos digitais contribui não só para o aumento exponencial da miopia como também para o agravamento dos sintomas de olho seco.
Uma das formas de minimizar estes sintomas é utilizar a regra dos 20-20-20, que estipula que a cada 20 minutos que passamos no computador, devemos olhar para 20 metros de distância e pestanejar 20 vezes. Tendo em conta esta realidade podemos ainda adotar outra regra, a dos 30-30-30, que estipula (exceto obviamente no trabalho) que se deve apenas utilizar para uso pessoal o computador, smartphone ou tablet 30 minutos de manhã, 30 minutos depois do almoço e 30 minutos à noite.
“uma consulta periódica de oftalmologia é também fundamental para se evitar o estabelecimento e progressão de patologias irreversíveis
No âmbito do Dia Mundial da Visão, que conselhos se podem dar para que as pessoas saibam proteger e cuidar dos seus olhos?
É muito importante a adesão de toda a população a rastreios promovidos por instituições idóneas, tais como a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Uma consulta periódica de Oftalmologia é também fundamental para se evitar o estabelecimento e progressão de patologias irreversíveis ou para orientação e tratamento específico de situações tais como a ambliopia, o glaucoma, a degenerescência macular relacionada com a idade ou a retinopatia diabética.
A nível mundial ainda é muitíssimo frequente a cegueira causada por patologias tratáveis atempadamente como o tracoma ou a catarata. A solidariedade, a colaboração e a formação no âmbito dos cuidados oftalmológicos, nomeadamente nos países Lusófonos, são importantíssimos para que se possam diminuir as diferentes causas reversíveis e irreversíveis de cegueira.
José Salgado-Borges licenciou-se em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina do Porto e doutorou-se na especialidade de Oftalmologia na mesma instituição. É fundador e diretor clínico da Clinsborges, coordenador dos serviços de Oftalmologia do Hospital da Boa Nova e do Hospital de Dia da Maia. Além disso, é atualmente o responsável pelo departamento de Oftalmologia do grupo Lenitudes, sendo também o autor do blog Salgado-Borges (https://salgadoborges.com), onde já publicou mais 100 artigos sobre Oftalmologia.
Com mais de 30 anos de prática médica e cirúrgica, J. Salgado-Borges realizou mais de 2.000 procedimentos refrativos, 800 transplantes da córnea e 12.000 cirurgias de catarata e glaucoma.
Professor Convidado da Universidade Fernando Pessoa, desde 2005, foi galardoado com 27 prémios, nacionais e internacionais, relacionados com a sua prática clínica, docente e de investigação.
É ainda Embaixador de Portugal da TFOS (Tear Filme & Ocular Surface Society) e Assessor da Visão dos Lions em Portugal.