Eram quatro da tarde quando saía de casa e seguia a passos largos Passos Manuel abaixo, bem ali no coração da invicta. Virava à direita, contra esquina de socapa, até à entrada das galerias que ali se firmavam com posters e cartazes de publicidade confusa espetada nas ínfimas vitrines – quais polidores de vidro, bicarbonato de sódio – nos anos 90!
De fora, via o homem de estatura baixa, que me costumava atender, o senhor Manuel, ora sisudo, ora simpático, entre um cartaz carcomido pelo sol, que rompia o dia e outro que gritava em letras garrafais: “A revelação só fica pronta em 48 horas”. 48 horas, não é só um filme de comédia de ação do século passado. 48 horas foi uma geração inteira e era também a primeira coisa que se ouvia, mesmo antes de ser lida, não fossem os apressados usar de qualquer subterfúgio, para convencer o senhor Manuel a passar à frente o seu rolo de fotográfico, em virtude da ansiedade que aquele tubinho mágico despertava. Parada como um dois de paus, em frente ao homem, deixava (contrafeita), o rolinho a mãos e voltava para casa, cabisbaixa, com o papelinho de levantamento dobrado em quatro, enfiado no bolso – 90s acid wash jeans – ansiosa que dois dias saltassem do calendário. No dia esperado, acontecia, por vezes, o serviço não estar pronto. Então, íamos “dar uma voltinha”, enquanto aguardávamos e lutávamos contra a tentação de não desperdiçar os parcos escudos numa bugiganga marroquina, que tínhamos conseguido poupar na promoção da vitrine, daquele dia: “36 = 24 – Só hoje!” Era um ato quase solene, receber depois, de mão esticada, aquele envelope Kodak alaranjado e maçudo nas mãos. O coração palpitava num misto de alegria e receio (que as melhores estivessem “queimadas”). Controlávamos os obstáculos, adaptando-nos de forma tranquila às adversidades. Estávamos habituados a esperas longas, quase sem reclamar e
controlávamos a ansiedade sem entorpecentes.
Nos 90´s aprendemos a rebobinar cassetes com a caneta Bic, introduzíamos disquetes em drives, esperávamos que a nossa música preferida tocasse no rádio, que ficava, amiúde, preparado com uma cassete previamente entalada no rádio portátil, para rodar. Pagávamos por filmes alugados no videoclube, à sexta-feira à noite, para entregar na segunda, por vezes sem ver e convinha chegar cedo porque senão “ia tudo”, restando só o que ninguém queria ver. Devolver a película sem rebobinar, dava direito a multa e esta acumulava com o atraso na entrega. Eram momentos enfáticos. Tínhamos de ser atentos e prestar todos os cuidados para o Tamagotchi não morrer. Quando uma cassete de vídeo travava, soprávamos a fita e violà, ela voltava a funcionar. Eramos mágicos! Juro que este trecho não versa o saudosismo ou nostalgia do já lá vai, mas ninguém pode negar – para quem a viveu – que foi uma época carismática, com o seu encanto. Vivíamos o pouco com muita simplicidade e intensidade. Os delirantes anos 90 não foram uma época que primou pela perfeição, foram tempos caóticos mas divertidos. Nos noventa vivíamos assim, para lá de um quadro social repleto de particularidades, eramos pacientes, imaginativos e construtivos. Tínhamos em derradeiras 48 horas, o que hoje temos em segundos.
Atualmente, assistimos a uma sociedade mais complexa e multifacetada, marcada por transformações profundas e desafios diferentes. Somos globalizados, revolucionários, tecnológicos, mas mais individuais, mais egoístas, o que impacta os relacionamentos e organizações, num todo global. Preferíamos os corpos em estado sólido. Hoje vivemos uma era líquida, com o seu volume próprio, mas forma variável. E até o amor, na sua sensibilidade – o maior de todos os concorrentes a agitar esse órgão muscular oco, situado no centro do tórax – tornou-se líquido. O amor é líquido, escreveu-o Zygmunt Bauman (sociólogo e filósofo polonês e britânico). As relações de hoje, são como nunca, caracterizadas pela falta de solidez, rápidas, superficiais, voláteis, sem responsabilidade e compromisso. Tudo está exposto de uma forma que a arte não pode penetrar. A privacidade, longe da intimidade, é aproveitada para instruir a violência. Trocamos as palavras pelo ruído, as cartas escritas a caneta no papel por sms’s, o sorriso pelos emojis, a
escassez de contacto pessoal por milhares de palavras escritas numa tela, nunca ditas. Estamos rodeados de pessoas e tão sós. Porque somos sozinhos com tanto? Sozinhos mas expert’s. Somos especialistas de qualquer coisa. E, erroneamente, tudo tem praticamente, solução. Tentar escavar a causa e origem de um acontecimento histórico é resvalar no tempo, em busca de solo firme e não é minha intenção desbravar terreno sobre os meandros intrincados da psicologia no quadro das ciências sociais, sem subtrair o conhecimento da realidade social. A solidão que o Eu enfrenta, raramente se tem convertido em solicitude e a discussão (em essência), centra-se mais em torno de questões existenciais e de consciência, que outra coisa, pese embora venham a desembocar, em última instância – e porque não em primeira – na desintegração da dinâmica social de pessoas, grupos, associações e instituições.
As relações (não necessariamente mais duradouras), tinham menos possibilidades de falharem, pelo menos na comunicação. Tudo o que era importante era dito pessoalmente, cara a cara, sabem, na vida real, com pessoas de carne e osso! Este panorama, não emerge (necessariamente), como um entendimento da necessidade da salutar solitude, para uso e compreensão de si mesmo(a), como forma de alcançar um equilíbrio saudável entre mim e o outro, na era da valorização pessoal. A tónica gira em torno do conceito de “Situationship”, uma nova forma de relacionamento que desafia as normas sociais tradicionais, onde as pessoas não se comprometem com as estruturas convencionais de um relacionamento exclusivo, valorizando a liberdade e a flexibilidade, permitindo que o “vínculo evolua” de forma orgânica, sem pressões externas.
Embora este tipo de relação possa oferecer uma alternativa atraente, apresenta desafios e dilemas suis generis, senão conflitos, pela ausência de uma definição clara, aberta e honesta. Todavia, não podemos descartar que não existe uma única forma para o amor, diferentes formas de conexão e que cada um, procura, aquela que ecoa mais com o seu ser, valores, necessidades e aspirações. Certo que, a fragilidade das relações humanas centra-se nos afetos e nos desafetos que esta vulnerabilidade suscita, nos contrassensos que encerra, entre a necessidade de
enraizamento de laços afetivos e a flexibilização dos mesmos. O século XXI vive momentos de fraqueza nas relações sociais. O respeito, a integridade, a confiança, a empatia, não diria que se afastaram ou que se têm vindo a afastar, esvaíram-se mesmo!
Apesar da escassez de tempo e da aceleração dos dias, reservamos horas infinitas na busca incessante de um inominado, nos nossos aparelhos tecnológicos. Qualquer coisa que mantenha a nossa microdose de dopamina em dia, procurando fora o que não encontramos dentro, chutando para canto o aborrecimento de termos de nos ocupar com a verdade dura do relógio. As relações humanas estão em declínio? Eu ousaria dizer que sim, ou então não é assim tão ousado. Somos finitos e impermanentes e isto é transversal a todos os tempos. O desafio é encontrar um equilíbrio salutar entre o cosmos, segundo as suas leis próprias, o social e o pessoal, só possível com uma tomada de consciência à escala global.
É este excesso de bagagem emocional, no nosso anseio de adaptar o Eu à realidade do mundo, que impacta e urge refletir – como se não houvesse amanhã – porque na verdade não há! Mas e o tolo? Ingênuo, ignorante, insensato, imprudente, quiçá irracional, sendo inquieto, não tem estas inquietações e talvez seja mesmo abençoado, porque é feliz. A intensidade está a servir -nos solidão? Utopia ou empirismo, não advogo nem cobiço a felicidade do tolo, que adapta o mundo à sua realidade, egoico, mas pouco imbecil. Cá por mim, continuo a gostar das pessoas incomuns. Daquelas que teimam em resgatar o tempo do(s) sentido(s). As que se incomodam com as correntes de ar por cima da cabeça e as que se permitem – contra a corrente e redundantemente – a representarem-se a si e em si mesmas. Precisamos de tudo e de tão pouco. Para que haja tempo, carecemos de lutar por uma busca de sentido, que possibilite o alcance do verdadeiro propósito da existência humana, com sabedoria e liberdade.








