Por detrás dos gráficos, dos índices e das previsões macroeconómicas, existe um outro saldo que raramente ocupa as manchetes: o estado psicológico de uma população submetida a ciclos sucessivos de instabilidade. A linguagem técnica aborda recessões, ajustes, estagnações… Contudo, o vocabulário mundano é outro: medo, exaustão, impotência. A instabilidade económica não consiste numa abstração. É uma experiência emocional coletiva, que se entranha silenciosamente na vida das pessoas e deixa marcas profundas no tecido social- marcas que permanecem ocultas, mas que se sentem a cada decisão adiada, a cada noite mal dormida, a cada futuro que se torna incerto.
Por sua vez, a ansiedade é o primeiro sintoma- e, talvez, o mais disseminado. Não se trata apenas de uma reação momentânea à incerteza, porém de uma condição permanente, uma vigilância constante perante ameaças difusas e incontroláveis. Os cidadãos vivem num estado de sobrevivência mental- uma atenção contínua que impede o descanso, a concentração, o planeamento. Quando os preços oscilam sem aviso, quando o emprego é precário ou intermitente, e quando o esforço de uma vida não basta para garantir a estabilidade mínima, a ansiedade deixa de ser um episódio. Torna-se numa paisagem interior, acompanhando cada gesto quotidiano. Até as decisões mais simples- como comprar alimentos, marcar férias ou ter filhos- passam a ser atravessadas pela dúvida e pelo receio do que poderá falhar.
Este tipo de sofrimento psicológico não escolhe classes sociais, embora atinja com maior brutalidade os que já viviam com menos recursos. A classe média, tradicionalmente vista como um amortecedor das tensões sociais, também tem sentido o peso da incerteza. A perda do poder de compra, o endividamento, a dificuldade em assegurar a educação dos filhos ou o acesso à habitação própria contribuem para uma sensação crescente de impotência. É como se o pacto social tivesse sido desrespeitado- como se o esforço já não bastasse. Muitos sentem que fazem tudo “como deve ser” e, ainda assim, afundam-se em insegurança.
Com o tempo, essa ansiedade dá lugar à desconfiança. A confiança social- que sustenta o funcionamento das instituições democráticas- começa a corroer-se. As promessas políticas soam como um eco longínquo. As decisões dos governos são vistas como tecnocráticas, distantes da realidade vivida. Multiplicam-se os sentimentos de abandono e invisibilidade. A ideia de que “ninguém olha por nós” torna-se uma verdade emocional partilhada. E quando essa perceção se generaliza, o risco não é apenas de alienação política, mas de rutura social. Instala-se uma espécie de cinismo defensivo, em que cada cidadão se refugia na descrença, desacreditando não apenas nos líderes, mas também na própria possibilidade de mudança.
A história demonstra o facto de as sociedades que atravessam longos períodos de instabilidade económica e degradação da qualidade de vida tornam-se férteis para a radicalização. O populismo cresce na mesma proporção em que a confiança institucional diminui. E o ressentimento instala-se como uma lente através da qual tudo passa a ser interpretado, desde os acontecimentos políticos até às relações interpessoais. Este é o terreno mais fértil para o “nós contra eles”, onde a complexidade é reduzida a slogans e onde o medo é instrumentalizado a benefício de projetos autoritários.
A desconfiança não se limita à esfera política. Alastra-se ao quotidiano, às relações pessoais, ao olhar sobre o outro. Torna-se mais complexo confiar em alguém num contexto onde todos lutam por si. As redes de solidariedade enfraquecem. A coesão social, por vezes já frágil, rompe-se silenciosamente. O isolamento cresce, não apenas físico, mas sobretudo emocional. O medo de cair, sem ninguém por perto para amparar, gera uma sociedade mais defensiva, menos capaz de empatia. E nesse retraimento coletivo, perde-se também a capacidade de imaginar um futuro partilhado.
Perante este cenário, é urgente ampliar a conceção de “estabilidade”. Não basta estabilizar os mercados ou equilibrar as contas públicas. A verdadeira estabilidade é a que permite às pessoas viver com dignidade, sem medo do dia seguinte. É a que permite planear, sonhar, confiar. A estabilidade económica deve ser também psicológica, relacional, comunitária. Tem de se traduzir numa sensação concreta de segurança, acessível a todos e não apenas a uma minoria privilegiada.
É fundamental que o debate público integre esta dimensão humana da crise. Continuar a tratar a saúde mental como um tema lateral é ignorar a profundidade do problema. Os serviços de saúde mental não podem ser apenas uma opção para quem tem recursos ou tempo para procurar ajuda. Têm de estar no centro das políticas públicas, articulados com a educação, a habitação, o emprego e a proteção social. Só assim se poderá oferecer um chão firme àqueles que vivem num constante abismo emocional.
A construção de um futuro coletivo mais sólido exige mais do que reformas estruturais: exige sensibilidade. Um Estado verdadeiramente moderno não é apenas eficiente, é, do mesmo modo, empático. Reconhece que o desenvolvimento humano é feito de condições materiais e emocionais e que nenhuma sociedade pode prosperar se os seus membros vivem num estado constante de inquietação e desconfiança.
No fim, o verdadeiro legado de uma crise mede-se não só pela sua duração, como pelas cicatrizes que deixa. Caso não exista a capacidade de cuidar das feridas emocionais provocadas por anos de instabilidade económica, corre-se o risco de herdar, por gerações, um legado invisível, mas profundamente paralisante: o de uma sociedade cansada de esperar – e já sem forças para acreditar.