Fim do regime dos Residentes Não Habituais: “Portugal não é competitivo fiscalmente e vai perder muita receita fiscal”

Raquel de Matos Esteves é advogada e especialista em questões fiscais, como o Regime dos Residentes Não Habituais, de que falamos nesta entrevista. A Partner da RME Legal explica detalhadamente as características deste regime fiscal, a quem se destina e porque considera o término do mesmo um “erro histórico” para o país.

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Como se caracteriza este regime fiscal dos Residentes Não Habituais?

O estatuto fiscal conhecido como “Residente Não Habitual” é um conjunto de regras, tendencialmente mais favoráveis do que as regras gerais de tributação, que podemos dividir em duas grandes categorias: Taxas fixas: a) uma taxa fixa de 20% para rendimentos profissionais (Categoria A ou B) obtidos em território português, no âmbito da lista de atividades elegíveis (ou no estrangeiro, quando não sejam efetivamente tributados, no caso da categoria A, ou sujeitos a tributação e constem da lista de atividades elegíveis, no caso da categoria B); b) uma taxa fixa de 10% para rendimentos que se qualifiquem como pensão, considerados obtidos fora do território português; ou Isenções: um conjunto de possíveis isenções em rendimentos apenas e só de fonte estrangeira, que sejam efetivamente tributados no país da fonte ou possam ser tributados no país da fonte, de acordo com os Acordos de Dupla Tributação celebrados por Portugal ou, na falta destes, com a Convenção modelo da OCDE. Deste modo, podemos dizer, de forma simplista, que o regime oferece uma taxa fixa de 20% a determinados
profissionais que Portugal pretende atrair e considere de elevado valor acrescentado, sendo importante dizer que não existe qualquer benefício em sede de Segurança Social. No que se refere aos pensionistas, Portugal começou por isentar os rendimentos de pensões que não se refiram a trabalho prestado no país e sejam pagas no estrangeiro, tendo posteriormente introduzido uma taxa fixa de 10%. Por fim, quanto às demais categorias de rendimentos, o regime acaba por funcionar como uma facilitação da eliminação da dupla tributação, ou potencial dupla tributação. Por forma a atrair novos residentes, e embora Portugal continue a tributar todos os rendimentos de fonte portuguesa (aplicando-se apenas uma taxa fixa de 20% em casos específicos), oferece-se uma potencial não tributação de rendimentos de fonte estrangeira (categoria A, B de elevado valor acrescentado, E, F e G), tornando-se desnecessário recorrer às regras gerais de eliminação de dupla tributação. Contudo, é
necessário dizer que nem todos os rendimentos estão abrangidos, por exemplo, são muito raros os casos em que as mais-valias mobiliárias escapam às taxas de 28%, 35% ou até 53%. Assim, o regime afigura-se bastante mais complexo do que possa parecer à partida e a maioria dos novos residentes não beneficia do regime na sua totalidade, pagando imposto em Portugal, que não raras vezes atinge valores muito elevados, considerando os níveis de rendimento envolvidos.

Quem é elegível para este regime?

Qualquer pessoa singular, independentemente da sua nacionalidade ou tipo de rendimentos, que não tenha sido residente fiscal em Portugal nos cinco anos anteriores e preencha os requisitos para ser considerado residente fiscal é elegível para o estatuto RNH. Convém reforçar que ter o estatuto fiscal não é uma concessão em branco de isenções fiscais: os benefícios são aferidos caso a caso, consoante as regras mencionadas em relação a
cada tipo de rendimento e considerando o Acordo de Dupla Tributação celebrado entre Portugal e o país da fonte (ou as regras gerais da Convenção Modelo).

Este é um regime que se destina exclusivamente a particulares ou existe alguma forma de as empresas estrangeiras beneficiarem deste regime fiscal?

Este regime está contemplado no Código do IRS português e é apenas e só aplicável a pessoas singulares.

“Não é novidade que Portugal não se afirma como competitivo a nível fiscal, nem em sede de IRS, nem em sede de IRC.
Não restam dúvidas que Portugal beneficiou de um acréscimo de receita fiscal, mesmo no caso dos pensionistas, por via do consumo elevado destes contribuintes, considerando o seu poder de compra.
[…]
Existindo regimes similares disponíveis na maioria
dos países europeus, é sempre feita uma análise
dos potenciais benefícios disponíveis. Portugal ficará simplesmente de fora”.


Na perspetiva da Raquel, que impacto pode ter, para a economia portuguesa, o fim deste regime a partir de 2024?

Não é novidade que Portugal não se afirma como competitivo a nível fiscal, nem em sede de IRS, nem em sede de IRC. Não restam dúvidas que Portugal beneficiou de um acréscimo de receita fiscal, mesmo no caso dos pensionistas, por via do consumo elevado destes contribuintes, considerando o seu poder de compra. Da minha
experiência profissional, em qualquer processo de imigração de profissionais qualificados ou pessoas que tenham rendimentos próprios que lhes permitam mudar de residência, a primeira questão a ser analisada é a tributação associada a essa mudança. Existindo regimes similares disponíveis na maioria dos países europeus, é sempre feita uma análise dos potenciais benefícios disponíveis. Portugal ficará simplesmente de fora. É importante
referir que atrair 10% de uma pensão que não foi gerada em Portugal, atrair 20% de um salário alto, acrescido de 35% de contribuições para a Segurança Social, e conseguir 28% ou 53% de mais-valias geradas no estrangeiro, tem-se traduzido num valor, só em IRS, elevadíssimo, e que em 90% dos casos deixará de chegar aos cofres do Estado português – onde contribui para os serviços públicos que não são, na maioria das vezes, sequer utilizados pelos beneficiários deste regime. Ou seja, associado à não atração de novos contribuintes com poder de compra e rendimentos elevados (em parte tributados), teremos de considerar que a despesa pública irá certamente impor o aumento da carga fiscal aos portugueses, como começaremos a ver num futuro próximo.

Este regime continuará a existir até ao final do ano e quem quiser ficar abrangido por ele pode fazê-lo até ao final de 2023. Isso granjeará um aumento repentino de investidores à procura deste regime fiscal?

Sim, sem dúvida que este anúncio gerou uma corrida ao regime: todas as pessoas que já tinham planos de se estabelecer em Portugal nos próximos anos estão a antecipar a sua vinda, já que o regime fiscal é uma condição essencial para a sua decisão se manter. Acontece que, infelizmente, os processos de imigração são demorados, pelo que para quem está a iniciar a sua mudança, de países não europeus, terá muita dificuldade em conseguir
encontrar vagas nos Consulados e ter residência em Portugal a tempo. Mas, mais grave que este cenário é o dos cidadãos que se encontram em Portugal a aguardar agendamentos no SEF e que estarão também em risco. Por exemplo, um cidadão de nacionalidade americana casado com um(a) cidadã(o) português(a), não tem qualquer
documento relativo à sua imigração enquanto não submeter perante o SEF um pedido de autorização de residência com base no seu vínculo familiar. Infelizmente, embora muitos cidadãos já vivam permanentemente em Portugal, o que é suficiente, por lei, para que sejam elegíveis para o RNH, devido a uma instrução de serviço interna da Autoridade Tributária, os serviços têm exigido um documento do SEF para registo da residência fiscal. Temos ainda uma Autoridade Tributária de portas fechadas, com atendimentos quase exclusivos por marcação,
vagas indisponíveis em Lisboa até ao final do ano para temas de identificação e tempos de resposta no e-balcão de semanas. Não é razoável ter uma proposta legislativa em outubro, cujos contornos finais apenas serão conhecidos em novembro, acabando com um regime – que era estável – em dezembro, considerando o caos instaurado no SEF e na AT. Acredito que o crescimento a que assistimos na última década se deve muito à vinda de novas ideias, novo talento, novo dinamismo e capital para a economia portuguesa. Será um erro histórico.