A Comissão Europeia apresentou em meados de Março a sua política estratégica para a Defesa – Livro Branco sobre a Defesa Europeia e plano ReArm Europe/Prontidão 2030. Quais as linhas-mestras deste(s) documento(s) e o que implicaria, em termos práticos, para cada Estado-membro?
No atual contexto geopolítico, marcado por ameaças crescentes à segurança europeia e por uma transição na ordem mundial, o Joint White Paper for European Defence Readiness 2030 (também designado como Livro Branco sobre a Defesa Europeia – Prontidão 2030) foi apresentado a 19 de março pela nova Alta Representante para a Política Externa e de Segurança, Kaja Kallas, e pelo novo Comissário Europeu para a Defesa, Andrius Kubilius. O documento define uma estratégia abrangente para reforçar a prontidão da defesa europeia até 2030.
Este documento aprofunda a proposta anteriormente avançada pela Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, quando, na sua conferência de imprensa em Bruxelas, a 4 de março, propôs um plano estruturado no valor de 800 mil milhões de euros. Um montante aproximado ao orçamento anual dos Estados Unidos da América para a defesa, que ronda os 751 mil milhões de euros (849,8 mil milhões de dólares), tendo por base o pedido do Pentágono na administração Trump para o ano fiscal de 2025.
Na minha perspetiva, a estratégia assenta em cinco pilares fundamentais. Em primeiro lugar, a criação do instrumento SAFE, dotado de 150 mil milhões de euros. Este mecanismo visa financiar capacidades de defesa prioritárias — como defesa aérea e antimíssil, artilharia, munições, drones, ciberdefesa e mobilidade militar — incentivando aquisições conjuntas, reduzindo a fragmentação, promovendo a interoperabilidade e reforçando a base industrial de defesa europeia. Paralelamente, contribuirá para o apoio imediato à Ucrânia.
Em segundo lugar, destaca-se a ativação coordenada da Cláusula de Escape Nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento, permitindo o aumento da despesa em defesa (até 1,5% do PIB anual, por um período de quatro anos) sem penalizações por défice excessivo. Ao abrigo do artigo 26 do Regulamento (UE) 2024/1263, os Estados-Membros poderão aumentar o investimento na área da defesa sem incorrer num Procedimento por Défice Excessivo, mesmo que ultrapassem o limiar de 3% do PIB. Este desvio será limitado ao incremento da despesa na função “defesa” (COFOG), até ao máximo de 1,5% do PIB por ano, prorrogável a partir de 2025. Portugal, entretanto, já sinalizou a sua intenção de ativar esta cláusula para reforçar o investimento na área da defesa.
O terceiro pilar consiste na reorientação de fundos da União Europeia para fins industriais de defesa. Já o quarto pilar, propõe o reforço do papel do Banco Europeu de Investimento, com especial enfoque no financiamento de iniciativas ligadas à segurança.
Por fim, o quinto pilar visa dinamizar o investimento privado no setor da defesa, facilitando o acesso ao financiamento por parte de PME e empresas de média dimensão, através de garantias e de uma maior clareza regulamentar. Simultaneamente, sugere-se canalizar uma parte significativa da poupança privada europeia — uma proposta mais controversa perante a opinião pública e algumas forças políticas europeias — para instrumentos do mercado de capitais, no contexto de uma futura União da Poupança e do Investimento, com o objetivo de fomentar o investimento produtivo e maximizar o seu impacto económico.
A concretização das orientações estratégicas do plano ReArm Europe exigirá, por parte dos Estados-Membros, um aumento significativo do investimento na defesa, nomeadamente através do reforço das capacidades militares, da modernização de equipamentos e da aposta na inovação tecnológica, em consonância com as prioridades estabelecidas a nível europeu. Este esforço requererá uma coordenação reforçada de políticas, com participação em projetos conjuntos, partilha de recursos, interoperabilidade de sistemas e integração das cadeias de produção e inovação, de modo a evitar redundâncias e potenciar economias de escala.
A indústria de defesa, tanto nacional como europeia, deverá ser consolidada por meio de incentivos à participação em consórcios europeus para o desenvolvimento de tecnologias críticas, contribuindo para a autonomia estratégica da União. Paralelamente, será essencial agilizar os processos de aquisição, permitindo uma resposta célere às necessidades emergentes, como o apoio à Ucrânia e a reconstituição de reservas estratégicas. Adicionalmente, a redução de dependências externas será prioritária, através da diversificação de fornecedores e do desenvolvimento de cadeias de abastecimento seguras e capacidades industriais em domínios estratégicos.
Contudo, este reforço visa sobretudo a dissuasão convencional de cada Estado-Membro, pois a UE carece de uma política de defesa coletiva própria, dependendo da NATO e da sua dissuasão nuclear. Esta constitui um elemento central na arquitetura de segurança coletiva e atua como fator de dissuasão contra potências nucleares como a Rússia ou a China.
Esta dependência encontra respaldo jurídico na segunda parte do n.º 7 do artigo 42 do Tratado da União Europeia subordina, na prática, a defesa da UE às obrigações decorrentes da NATO, a qual continua a constituir o pilar fundamental da defesa coletiva para os Estados-Membros da União que também integram a Aliança. No entanto, este artigo, ao limitar-se a prever uma cláusula de assistência, não estabelece um compromisso comparável ao artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que prevê uma resposta coletiva a ataques armados. Assim, a resposta da UE permanece dependente da vontade e definição soberana de cada Estado-Membro, não implicando necessariamente o uso de força militar.
Deste modo, a NATO mantém-se como o principal garante da defesa coletiva europeia. A cooperação entre a UE e a Aliança é, por conseguinte, essencial para o desenvolvimento da dimensão europeia da segurança e defesa, sendo os instrumentos financeiros e regulatórios da União determinantes para que os 23 Estados-Membros da UE que integram a NATO possam atingir os seus objetivos em matéria de capacidades.
Neste contexto, defendo, a criação de uma “NATO europeia”. É impossível estabelecer uma verdadeira Política Comum de Segurança e Defesa Europeia sem um membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e sem uma potência nuclear, como o Reino Unido. Além disso, é essencial considerar a Noruega, que recentemente passou a participar plenamente nos programas de defesa da União Europeia através do orçamento comunitário. Esta política deve ser orientada para uma integração entre os membros europeus da NATO que partilhem de valores e interesses comuns, consolidando assim uma “NATO europeia”.1
Portanto, qualquer solução de defesa coletiva europeia fora do quadro da NATO revela-se inexequível a curto e médio prazo, pelo que a via federalista, embora teoricamente apelativa, permanece politicamente inviável nas circunstâncias atuais.
Que impacto se espera que o Livro Branco sobre a Defesa Europeia – Prontidão 2030 venha a ter na concretização de uma verdadeira indústria de armamento europeia?
O documento poderá emergir como um instrumento estratégico essencial para consolidar uma indústria de armamento europeia robusta e autónoma, articulando medidas que promovem o investimento, a colaboração e a inovação.
Por um lado, se houver um aumento coordenado dos investimentos em defesa por parte dos Estados-Membros, isso fomentará a procura por tecnologias militares e fortalecerá a base industrial europeia. Por outro lado, ao incentivar consórcios industriais e projetos conjuntos – como é o caso paradigmático da Airbus –, reforçam-se capacidades comuns e a competitividade global. Além disso, a Europa deve priorizar políticas de aquisição que privilegiam empresas europeias, estimulando o desenvolvimento de tecnologias críticas e propondo um mercado único de defesa na UE, facilitando a circulação de produtos e aumentando a eficiência.
Estas iniciativas, consagradas no Livro Branco, visam, ainda que de forma não explícita, reduzir a dependência externa, em particular em relação aos Estados Unidos e às suas principais empresas de defesa (como a Lockheed Martin, Northrop Grumman, Boeing ou General Dynamics), cuja influência se consolida através da proliferação de armamento e equipamento patenteado no âmbito da NATO. Mas também posicionar a Europa como líder global em segurança e defesa, num contexto de desafios geopolíticos crescentes.
A sua concretização depende, em última instância, da vontade política conjunta dos Estados-membros e da disponibilidade financeira da União, desde que esta última se mantenha imune a constrangimentos orçamentais (ex. crises financeiras ou económicas).
Estas estratégias acima mencionadas deveriam estar concluídas e implementadas até 2030? Parece-lhe viável que assim seja?
O horizonte de 2030, definido como meta para uma defesa europeia consolidada, configura um desafio complexo devido à escala das transformações necessárias, mas não inviabiliza a obtenção de avanços substanciais. Entre os principais desafios à viabilidade das estratégias e plano do Livro Branco, encontra-se volatilidade geopolítica, associada à imprevisibilidade de ameaças emergentes, que pode desviar recursos de objetivos de longo prazo. Outro importante desafio, e já referido, são as divergências políticas entre Estados-membros, particularmente em matérias orçamentais e prioridades de capacitação militar, representam entraves à tomada de decisões ágeis. Além da capacidade industrial europeia, ainda fragmentada e com limitações produtivas, requerendo investimentos coordenados para modernização e escalabilidade. Por exemplo, a inovação tecnológica, incluindo sistemas de IA e computação quântica, exige não apenas financiamento, mas também harmonização regulatória e formação especializada. Ou seja, trata-se de fomentar toda uma cultura estratégica que viabilize a criação de hubs de defesa e de tecnologias avançadas em solo europeu.
Contudo, e em primeiro lugar como fator facilitador da implementação das estratégias do Livro Branco, é a consciencialização urgente das elites políticas e da opinião púlica europeias decorrente do conflito ucraniano que catalisa a cooperação estratégica e o aumento de gastos em defesa. Em segundo, mecanismos financeiros comunitários, como o programa SAFE e o plano ReArm Europe, oferecem suporte estrutural para aquisições conjuntas e interoperabilidade. A cooperação reforçada entre Estados-membros e o apoio industrial através de parcerias público-privadas otimizam a eficiência e reduzem duplicações.
Assim, atingir os objetivos até 2030 depende da manutenção do ímpeto político, da superação de fragmentações nacionais e do alinhamento entre capacidades industriais europeias, inovação tecnológica e estratégia geopolítica comum, sustentado pelo financiamento europeu e pela integração progressiva de atores-chave como a França, Alemanha, Itália ou a Polónia.
Que impacto pode vir a ter o posicionamento húngaro nas decisões relativas a Defesa e Segurança na UE?
A Hungria, desde a sua adesão à UE, tem demonstrado um perfil político caracterizado por um certo euroceticismo e uma postura que por vezes diverge da maioria dos outros Estados-Membros, especialmente em questões sensíveis da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) da UE. Esta nação da Europa Central, liderada pelo Primeiro-Ministro Viktor Orbán, tem adotado uma linha política que prioriza a soberania nacional e que, em certas ocasiões, se alinha mais estreitamente com os interesses de atores externos como a Rússia e a China.
Neste conexto, o posicionamento da Hungria tem um impacto significativo nas decisões da União Europeia em matéria de PESC (com exceção de certos casos claramente definidos que exijam a maioria qualificada, por exemplo a nomeação de um representante especial) são votadas por unanimidade. Quando não se abstém (na votação por unanimidade, a abstenção não impede que seja adotada uma decisão), a Hungria tem demonstrado a sua capacidade de bloquear ou atrasar iniciativas importantes, particularmente no que diz respeito ao apoio à Ucrânia e às sanções contra a Rússia. Esta postura frequentemente divergente, motivada por uma ênfase na soberania nacional, laços económicos com a Rússia e uma visão política que por vezes se alinha mais estreitamente com atores externos, representa um desafio para a unidade e a eficácia da PESC.
Não obstante, existe uma crescente tendência de outros Estados-Membros da UE procurarem formas de contornar a obstrução da Hungria, seja através de medidas a nível nacional, de coligações de voluntários ou da exploração de mecanismos previstos nos tratados. Além disso, apesar das suas divergências em certas áreas, a Hungria continua a participar em iniciativas de defesa da UE e da NATO, demonstrando um compromisso seletivo com a cooperação militar europeia e transatlântica, especialmente em áreas que beneficiam os seus interesses nacionais, como o reforço da indústria de defesa europeia.
Em última análise, os desafios e as oportunidades para a PESC face ao posicionamento da Hungria dependem da capacidade da União de equilibrar a necessidade de unidade e ação coletiva com o respeito pela soberania nacional e as diversas perspetivas dos seus Estados-Membros. A persistente obstrução da Hungria poderá levar a reformas nos mecanismos de tomada de decisão da UE ou a uma maior cooperação fora das estruturas formais da UE. A evolução do posicionamento da Hungria, influenciada por dinâmicas políticas internas e externas, continuará a ser um fator crucial na configuração do futuro da política de Defesa e Segurança da UE.
Portugal terá disponibilidade – política e financeira – para apostar na área da Segurança e Defesa, considerando o facto de nunca ter ainda conseguido cumprir um objetivo semelhante relativamente ao contributo para a NATO (2%)?
A capacidade de Portugal para apostar na área da Segurança e Defesa, tanto do ponto de vista político como financeiro, encontra-se condicionada por vários fatores estruturais e conjunturais, especialmente tendo em conta o histórico de incumprimento do objetivo de investir 2% do PIB em Defesa, conforme estabelecido pela NATO.
Portugal, à semelhança de outros membros da NATO, como a Itália e a Espanha, continua sistematicamente abaixo do limiar dos 2% do PIB em despesas de Defesa, tendo destinado apenas cerca de 1,5% em 2024. No final de janeiro deste ano, aquando da visita a Lisboa do Secretário-Geral da NATO, Mark Rutte, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro aproveitou a ocasião para anunciar a intenção do Governo português de alcançar a meta dos 2% apenas em 2029, o que implicará duplicar o orçamento atual para cerca de seis mil milhões de euros. Contudo, no passado dia 12 de abril, o Ministro das Finanças recusou-se a comprometer-se com um prazo ou montante específico para antecipar essa meta.
A verdade é que este reforço orçamental implicará um aumento de 1,7 mil milhões de euros nos próximos quatro anos, num contexto em que Portugal é dos países da Aliança Atlântica que menos investe em Defesa em proporção à sua riqueza.
Acresce que, apesar do aumento recente do orçamento da Defesa (com uma subida de 5,38% prevista para 2025), a concretização deste objetivo exigirá um esforço financeiro considerável. O compromisso do Governo é que este aumento não comprometerá a estabilidade orçamental, prevendo-se excedentes até 2028. No entanto, o aumento para 2% do PIB obrigará a uma reestruturação orçamental profunda, com necessidade de encontrar fontes alternativas de financiamento, como aumento de receitas, ajustamentos orçamentais ou recurso a instrumentos europeus como o Fundo Europeu de Defesa (FED).
Assim, por um lado, Portugal enfrenta limitações orçamentais evidentes, refletidas na hesitação em aderir a iniciativas europeias de financiamento conjunto, como o “banco de rearmamento” da União Europeia. Por outro lado, a inclusão das despesas com a GNR nos relatórios apresentados à NATO permite inflacionar artificialmente o valor reportado, sendo que o investimento efetivo nas Forças Armadas se situa em torno de apenas 1,1% do PIB. Isto acontece porque a NATO autoriza os países membros a incluírem, nas suas contas de Defesa, forças de natureza militarizada — como a GNR (em Portugal), a Guardia Civil (em Espanha) ou a Gendarmerie (em França) — desde que estas exerçam funções militares ou possam ser mobilizadas em contexto de defesa nacional. Acresce ainda a possibilidade de contabilizar pensões militares, o que contribui adicionalmente para o aumento artificial dos valores reportados. Esta prática, embora permitida no âmbito da Aliança, evidencia que o esforço real de modernização e reforço das capacidades militares permanece significativamente abaixo do que é oficialmente declarado.
Na minha opinião, para que Portugal possa cumprir o objetivo dos 2% e apostar de forma sustentável na Defesa, será necessário:
- Modernizar tecnologicamente as Forças Armadas, investindo em I&D e tecnologias dual-use;
- Melhorar as condições salariais das Forças Armadas;
- Aumentar a eficiência nos processos de aquisição e manutenção;
- Fomentar a indústria nacional de defesa e promover parcerias público-privadas;
- Participar em iniciativas europeias de financiamento conjunto para diluir custos.
Em termos gerais, Portugal enfrenta um desafio estrutural e financeiro significativo para cumprir o objetivo dos 2% do PIB em Defesa, nunca tendo conseguido atingi-lo até agora. A concretização desta meta exigirá uma transformação profunda na gestão orçamental, alinhamento com políticas europeias e um equilíbrio delicado entre as necessidades de segurança e outras prioridades sociais. A disponibilidade política existe, mas a disponibilidade financeira só será possível com reformas estruturais, maior eficiência e colaboração europeia reforçada.
1 Tenho defendido esta posição em Bruxelas, junto de diversas elites políticas e académicas europeias, tendo publicado acerca do tema no Wilfried Martens Centre for European Studies https://www.martenscentre.eu/article-author/aderito-vicente/