A globalização trouxe enormes desafios à defesa da saúde pública. Cada vez mais temos de pensar em termos do conceito de “Uma Só Saúde”, que inclui a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. As doenças não respeitam fronteiras quer entre países, quer entre espécies. Por exemplo, a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) refere que cerca de 60% das infeções humanas são zoonoses (1) e que, pelo menos, 75% das doenças emergentes têm origem animal. Ou seja, não faz sentido pretender a completa Saúde Humana sem procurar, com igual empenho, a Saúde Veterinária. Refletindo esta realidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) trabalha em íntima colaboração com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e com a OIE, no sentido de prevenir e administrar as ameaças comuns e os seus impactos do ponto de vista social, económico e de saúde pública.
À medida que estas doenças zoonóticas emergem, os riscos de pandemias, como aquela que vivemos atualmente, tornam-se cada vez mais prováveis e críticos. No entanto, existem outras ameaças comuns à saúde humana e animal, nomeadamente, as resistências a antimicrobianos ou a poluição e degradação ambiental, que não podemos nem devemos ignorar. Igualmente, um conhecimento aprofundado do impacto das atividades humanas e dos diferentes estilos de vida, nos ecossistemas, é crucial para uma interpretação rigorosa das dinâmicas das doenças e para conduzir a políticas mais eficazes. Em suma, a saúde deve ser considerada como um bem global, multifacetado e multidisciplinar exigindo uma abordagem transversal que integre a saúde humana, a saúde animal, a saúde dos vegetais, a saúde dos ecossistemas e a preservação da biodiversidade.
Portanto, o conceito “Uma Só Saúde”, apresentado oficialmente em 2004, deve incorporar a saúde humana, animal e ambiental, incluindo a fauna selvagem, e deve estar por detrás da uma estratégia global que realce uma abordagem holística e transdisciplinar, onde são necessários conhecimentos multissetoriais para lidar com todas as dimensões da saúde. Claro que uma das principais barreiras ao desenvolvimento de abordagens no contexto de “Uma Só Saúde” tem sido a falta de comunicação entre a medicina humana, a medicina veterinária e as ciências agronómicas, ecológicas e ambientais. Remover estes impedimentos implica um grau de integração e de compreensão suficiente entre todas as disciplinas, mas também abordagens multidisciplinares e favorecimento das condições ideais para as suas implementações.
No caso particular da medicina veterinária, o conceito “Uma Só Saúde” é amplamente promovido e aplicado diariamente. A profissão médico-veterinária desde sempre abraçou a ideia de que a saúde humana, a saúde animal e a saúde do ambiente estão intrinsecamente interligadas e sempre evidenciou vontade para uma corrente e efetiva colaboração transdisciplinar. Especialmente no controlo de doenças zoonóticas, os benefícios da cooperação entre Médicos Veterinários e Médicos de humanos são por demais evidentes. Os combates a doenças zoonóticas, como a brucelose, a tuberculose, a hidatidose ou a raiva, têm como pilar básico e fundamental a atuação dos Médicos Veterinários.
Neste contexto, torna-se cada vez mais necessária a consolidação das posições conquistadas pelos Médicos Veterinários na Saúde Pública, bem como a conquista de novos espaços. É importante que os cidadãos estejam cientes de que o contributo do Médico Veterinário para a saúde de todos passa, hoje em dia, não só pelo diagnóstico e tratamento de doenças animais (zoonóticas e outras), mas também pela investigação científica no âmbito da saúde animal, pela inspeção da qualidade e salubridade dos produtos de origem animal (ovos, carne, leite, pescado…), pelo controlo dos locais de abate e de comercialização desses produtos e pela coordenação de equipas de vigilância na área da saúde pública. O conceito de monitorização e certificação faz-se do “prado ao prato”, ou seja, ao longo de toda a cadeia desde a produção ao consumo.
Aliás, é fácil identificar em todas estas atividades do quotidiano, o contributo do Médico Veterinário em termos de Saúde Pública.
Os Médicos Veterinários são cruciais na defesa da saúde e bem-estar dos animais de produção ou de pecuária. Através das suas ações e de campanhas por si coordenadas, é possível identificar e eliminar focos de infeções zoonóticas, impedindo que atinjam os humanos através dos seus produtos. Pela sua ação no sentido da prevenção e do diagnóstico precoce, será possível reduzir o uso de fármacos, especialmente antimicrobianos, garantindo ainda maior segurança dos alimentos que chegam às prateleiras e ao consumidor. Assim, programas sanitários como o controlo e erradicação da brucelose e tuberculose dos bovinos, bem como da sanidade suína e avícola estão diretamente associados à gestão necessária para impedir efeitos negativos na saúde humana, através do contágio a partir dos próprios animais ou dos produtos deles derivados.
Igualmente, a atividade de clínica de animais de companhia é um importante elemento no contexto de “Uma Só Saúde”. O Médico Veterinário é responsável pelo controlo das doenças que, não só, podem afetar a qualidade de vida e bem-estar dos animais, mas também a saúde e bem-estar dos seus detentores. São inúmeras as doenças que potencialmente podem circular entre as diversas espécies, e apenas o Médico Veterinário tem competência para as prevenir ou eventualmente diagnosticar e eliminar. Será única e exclusivamente pela atuação do Médico Veterinário que relativamente poucos casos de zoonoses chegam às mãos dos profissionais de saúde humana.
Amplamente citada anteriormente, a luta contra as zoonoses é considerada pela OMS uma das principais atividades da saúde pública veterinária. Pois, além de serem um fator de morbilidade e mortalidade para os animais, que é extensível aos seres humanos, estão diretamente ligados a aspetos económicos. A prevenção e a eliminação das zoonoses nos seres humanos dependem, em grande parte, das medidas adotadas contra estas enfermidades nos animais.
A inspeção sanitária e a segurança alimentar são duas outras atividades cruciais desenvolvidas pelos Médicos Veterinários, que garantem a higiene e a sanidade dos produtos e dos locais onde se processam e preparam os alimentos de origem animal, assegurando todas as qualidades necessárias e exigidas pelo consumidor. Sem a atuação dos Médicos Veterinários ao longo de toda esta cadeia o consumidor estaria exposto a muitos mais riscos e a sua segurança e saúde não estaria garantida.
Finalmente, sendo a epidemiologia a ciência que estuda a distribuição e os determinantes dos problemas de saúde em populações, no caso da medicina veterinária, esta avalia a incidência das doenças dos animais, fornecendo elementos importantes para a decisão sobre que medidas de prevenção e controlo devem ser implementadas. Assim, ao avaliar a epidemiologia das doenças dos animais, o Médico Veterinário está a dar um passo no sentido do tratamento e controlo das zoonoses, eliminando ou diminuindo as possibilidades de transmissão aos seres humanos. Não é coincidência que muitos dos especialistas ouvidos nos meios de comunicação social ou convidados a integrar as equipas de combate a pandemias em muitos países, tenham uma formação na área da medicina veterinária. Estamos preparados e formados para atuar perante epidemias e surtos em grandes populações e para procurar soluções rápidas e eficazes.
Em jeito de conclusão, vale a pena assinalar o contributo da Medicina Veterinária para a Saúde Pública através do cuidado e controlo da relação dos animais, e os produtos deles derivados, com o homem e com o meio ambiente. Assim, o Médico Veterinário está perfeitamente preparado para assumir as funções nos organismos de saúde, coordenando, planeando e executando os programas que vão permitir a promoção e a preservação da saúde humana.
(1) Zoonoses referem-se a doenças que podem atingir tanto humanos como animais.