“O Ser Humano tem uma virtude inegável: a resiliência”

Psicóloga há pouco mais de 10 anos, Alícia Peres exerce a profissão que sempre quis. Proprietária de um espaço próprio, o trabalho no consultório é complementar à atividade exercida junto da população reclusa de um estabelecimento prisional. Nesta entrevista esteve ainda presente a situação de confinamento, causada pela pandemia do coronavírus.

0
2389
Alícia Peres, psicóloga

Considera que pode ter havido habituação dos portugueses ao confinamento?

Pode. As reações variam de pessoa para pessoa, e é difícil discutirmos sem dados estatísticos, de qual terá sido a prevalência nos comportamentos dos portugueses, no caso específico da possível habituação ao confinamento. A habituação é um comportamento aprendido e o período de confinamento possibilitou tempo suficiente para a ocorrência dessa hipótese. Além disso, temos de ter em consideração que o ser humano tem uma forte capacidade de adaptação, até mesmo às situações mais adversas, como a que vivenciamos. Um fenómeno particularmente interessante de observar, que pode ter contribuído para a normalização do confinamento, foi o exacerbar do uso das redes sociais que, apesar de já existirem, permitiram manter um contacto com a nossa família, com os nossos amigos, com os nossos colegas de trabalho e, ao mesmo tempo, respeitar o novo paradigma da necessidade do aumento do distanciamento físico social. No entanto, devemos prestar particular atenção à fundamental necessidade de contacto físico e comunicação face-a-face, sem intermédio tecnológico.

Aquando do desconfinamento, as pessoas podem sofrer um “choque com a realidade”?

Nem todas, mas uma parte da população poderá vir a sentir. Sobretudo aquelas pessoas que não desenvolveram ainda, suficientemente, os mecanismos de coping necessários para se adaptarem à nova realidade. Pelo próprio desenvolvimento pessoal, existem pessoas mais resistentes à mudança. Infelizmente, este processo não é um retorno à nova realidade, é a criação de uma nova realidade. A ameaça constante de um agente externo, neste caso um vírus, impõe uma mudança interna do quotidiano e das preocupações do indivíduo que poderá ser melhor ou pior gerida. Durante o confinamento houve uma mudança drástica e dramática, não só de uma perspetiva pessoal, mas igualmente profissional. A incerteza do retorno normal ao trabalho, ao rendimento, criou uma situação atípica, expondo algumas das fragilidades já existentes na nossa sociedade. De realçar que este choque que algumas pessoas inevitavelmente irão sentir com a mudança do novo paradigma social, não faz de nós melhores ou piores, apenas expõe a nossa humanidade, nas suas limitações e virtudes. Não existem respostas fáceis nem rápidas. No entanto existem algumas medidas consensualmente aceitáveis, como retomar atividades normais do dia-a-dia, assumir uma postura ativa face às consequências da nova realidade, procurar suporte social e emocional, recordar situações de sucesso em acontecimentos desafiantes anteriores, obter informação adequada, procurar sensações de segurança, de autoeficácia e esperança.

Os reclusos do estabelecimento prisional onde trabalha são uma população particularmente vulnerável a esta situação pandémica?

Sem dúvida. Os reclusos são indivíduos que, em condições normais, se encontram isolados. No entanto, pelo facto de se encontrarem circunscritos a um espaço comum, faz com que uma população com características muito particulares se sinta ainda mais vulnerável do que o comum indivíduo em liberdade. Existe um medo óbvio de que a limitada liberdade que estes indivíduos gozam dentro dos estabelecimentos prisionais seja ainda mais limitada. Independentemente do facto de que o número de casos de infeção em estabelecimentos prisionais seja manifestamente residual. Estamos a lidar com uma situação de ansiedade e de stress dramática, na qual o recluso poderá ser privado da limitada liberdade que possui, na qual existe o isolamento do contaminado. No contexto familiar, nas nossas casas, todos nós estivemos, em certa medida, confinados ainda assim todos possuímos um certo grau de liberdade. Liberdade de diálogo com o nosso marido ou esposa, com os nossos filhos, com os nossos pais, ou tão simplesmente a liberdade de poder mudar de divisão. Esta liberdade já por si, infelizmente, demasiado limitada, não existe na população reclusa. Outro potencial fator de aumento de ansiedade na população reclusa e dos seus familiares foi a possibilidade colocada pelo Governo português de indulto dos indivíduos mais vulneráveis. Esta medida não só afetou os indivíduos possivelmente abrangidos, mas como todos aqueles dentro do estabelecimento prisional. Outra questão particularmente pertinente prende-se com a avaliação destes indivíduos que viram a sua liberdade antecipada e a incerteza se possuiriam as ferramentas necessárias para se inserirem numa sociedade completamente atípica. De realçar que foi feito um planeamento por cenários e a população reclusa foi preparada à medida que cada um foi apresentado. A forma como se comunica tem sempre impacto. Numa situação de crise, ainda mais sensíveis e responsáveis temos de ser, e aqui houve um reforço nesse sentido.

Parece-lhe que este é também um momento de reconhecimento da importância da saúde mental?

Parece-me que tem sido um momento em que estamos de olhos postos na ciência e espero, em particular, que também se continue a olhar para as ciências psicológicas e o papel que estas têm na saúde mental. A literacia na saúde tem sido uma forte aposta e é importante referir o trabalho incansável por parte da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Tem-se reconhecido mais o valor da saúde mental e tem-se falado mais em prevenção, da qual não se deverá esquecer a influência direta para baixar custos financeiros e humanos.

Teve oportunidade de exercer a sua profissão enquanto vigorava o confinamento obrigatório?

Tive oportunidade de realizar consultas e, sempre que possível, com recurso aos meios decomunicação à distância. Nas primeiras semanas não senti um impacto significativo da pandemia, mas depois fui verificando algumas alterações com especial agravamento nas Perturbações de Ansiedade e Perturbações de Humor.

Parece-lhe que algo vai mudar, a nível comportamental, após esta experiência de confinamento?

Considero que existe potencial para a mudança comportamental, após esta experiência. Considero também que essa mudança poderá tanto ocorrer numa perspetiva de crescimento quanto de stress pós-traumático. Não compartilho da premissa do “vai ficar tudo bem”, ainda que compreenda a benemérita ideia que subjaz o lema. Muitíssimo mais marcante do que a questão da clausura, sem prejuízo do seu valor, é sem dúvida a questão do trauma adjacente à perda humana. A violência imposta pela imposição de um luto atípico irá, sem dúvida, ter um impacto social e individual significativo. Historicamente, podemos constatar que todos as crises económicas, como a que espreita, implicam, com variáveis graus, uma significativa crise social de saúde mental. O Ser Humano, com todos os seus defeitos, possui uma virtude inegável – a sua resiliência. Embora de perto e a curto prazo nos custe acreditar, todas as adversidades são uma oportunidade de crescimento e esta crise é uma oportunidade inegável de mudar paradigmas há muito sedimentados. Sem dúvida poderá existir mudança. A mudança coletiva virá inevitavelmente da reação individual. Não menosprezemos a perda individual. E como o indivíduo reagirá a tal ditará o nosso futuro.

aliciaperes.psicologia@hotmail.com