De repente, o palhaço assassino é mais que um assassino. Percebemos que não nasceu assassino, que não nasceu doente mental (até prova contrária) e todos nós assistimos, de coração apertado, à construção da sua necessidade de matar, a loucura da sua dor e a fragilidade do seu viver. Afinal, o palhaço tem uma história, tem traumas, tem uma vida não invejável, é gozado, criticado, ridicularizado, espancado, não sabe quem é o pai, ficou sem saber quem era afinal a sua mãe que tanto amou e estimou e vive numa cidade desumanizada e invadida por ratazanas.
Afinal, o palhaço tinha uma doença mental e uma dor que não conseguia suportar. E nós, sentados na cadeira, quase sem pestanejar, por momentos sentimos uma compreensão tremendamente assustadora perante aquele aparato de guerra, sangue e violência. Afinal, sentimos a morte e o caos por um lado e a dor do palhaço e de uma cidade por outro. Conseguimos estar nos dois lados da história em simultâneo. Nem todos simpatizamos com o palhaço, mas quase todos temos empatia com ele, com a sua dor, com a sua tragédia, com a sua vida sem um único momento de felicidade.
Afinal, segundo ele, a pior parte de ter uma doença mental é as pessoas esperarem que te comportes como se não a tivesses. Afinal, há um Ser Humano por detrás do palhaço que embora seja assassino tem uma história que, não o desculpando de todo os seus atos (afinal, quantas outras histórias semelhantes não acabam desta forma? Há palhaços não assassinos!), nos fazem compreendê-los. E acredito que foi esta compreensão que nos tornou tão próximos desta personagem. Compreensão porque calçamos os sapatos do palhaço, colocamos o nariz do palhaço e sentimos, ou tentamos pelo menos sentir, o que seríamos nós se estivéssemos naquela história, com aquelas experiências e com aquela vida. Se foi escolhida por ele, não sabemos. Sabemos que a sua (in)capacidade mental e emocional merecia um cuidado e vigilância especial por parte de terceiros, ou de todos nós? Inimputável? Talvez, também não sabemos bem, mas sabemos que o impacto da sua loucura foi imenso e que deixou rastos noutros tantos que vão potenciar a criação de outros assassinos, palhaços ou não.
Acredito que o poder especial deste filme, que poderia ser só mais um, mas que não é nem será, é esta tentativa de nos humanizarmos e de tornarmos mais pessoas. Julgamos tanto, fazemos guerras, com menos impacto bem sei, mas por tão menos, gozamos com aqueles que se comportam de forma diferente, às vezes de forma gratuita, achamo-nos superiores porque conseguimos o que outros aparentemente não conseguem, escolhemos o riso quando na verdade nos sentimos tão tristes e tão sós porque achamos que ser forte não contempla lágrimas e lamechices, banalizamos a dor e desta forma prolongamo-la, esquecemo-nos tanto que temos todos telhados de vidros e que nunca sabemos que pedra nos pode partir os nossos, achamos que a nossa razão, conhecimento e valores são mais válidos do que os dos outros. Não somos pacientes em nada e não educamos para a paciência, quase não nos olhamos, quase não nos tocamos e os abraços só existem em dias de festa, e ainda acreditamos que os filmes de terror só existem na vida dos outros e lá longe.
As escolas estão tristes, as taxas de suicídio aumentam, destilamos os nossos ódios nas redes sociais, vivemos excessivamente da aparência, temos uma opinião muitas vezes inflexível sobre tudo e todos, entregamos telemóveis aos filhos com 10 anos ou menos para jogarem jogos onde se ganha a matar, compramos o que não precisamos e vivemos a sobreviver grande parte das vezes. É por tudo isto que o Joker mexeu mais ou menos, melhor ou pior, com milhares de perspetivas diferentes, com todos nós. Estou certa de que não faltaram ao realizador exemplos para uma criação tão fantástica e tão em espelho com aquilo que todos nós vivemos e com todos os Jokers que temos na nossa vida, cultura, sociedade e dentro de nós.