Não trabalhe nunca!

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Apesar de ainda se viverem momentos conturbados, aquela sensação inicial – daqueles primeiros segundos da manhã, que ainda mal acordados na penumbra, não percebemos bem, se o que está a acontecer não passou de um sonho estranho ou se é de facto a realidade – julgo que terminou. Finalmente caímos em nós! Aprendemos a viver com este bizarro quotidiano, de gritarmos na rua às crianças para não tocarem em nada, desinfetarmos as mãos em todas as esquinas e de, no meio de tantas máscaras e viseiras, até já vermos algumas com super heróis e princesas, numa tentativa de trazer alguma descontração e conforto a este desconforto.

Mas parece-me que algo mais profundo surgiu disto tudo…

Julgo que muitos se encontram em reflexão sobre as suas vidas. Pode ser sobre a importância das suas famílias, sobre o emprego que tem (ou deixaram de ter), sobre o modo como desempenham as suas funções, sobre o que verdadeiramente tem significado para eles ou sobre o que deixaram de fazer e, ao contrário do que julgavam, não lhes faz falta nenhuma. Fruto desta fase, reavaliaram as suas prioridades, encontraram novos polos de interesse e paixões, ocuparam-se quando não tinham ocupação, com uma criatividade, imaginação, frescura e positividade que torna o espírito humano único. Esta “pausa forçada” que todos tivemos, maior ou menor, de um modo ou de outro, teve e terá implicações na nossa vida. E ainda bem!

Não será então que todos devemos refletir sobre o que realmente tem tanto significado para nós, que conseguiu o prodígio de nos manter sãos durante estes tempos estranhos? Esse deverá ser o nosso foco, seja ele qual for.

No mundo do trabalho já tínhamos vindo a assistir a muitas alterações e este momento tornou-se um acelerador das mesmas. Não consigo deixar de pensar em algumas das ideias de Agostinho da Silva e como se aplicam tão bem à nossa realidade. Este dizia que, “O Homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta” e, de facto, a teoria do ócio criativo faz cada vez mais sentido. A ideia que não só a conciliação da vida familiar e de lazer com a profissional, mas mais ainda, que a total mistura e integração de todas as dimensões humanas, para que o chamado “ócio” beneficie a vida profissional e esta, por sua vez, seja feita de ócio é fascinante. A pessoa que se diverte a satisfazer os vários quadrantes da sua vida relacional e intelectual executa em simultâneo a sua atividade profissional. Perfeito, não? É a sensação que se apanha no ar, vinda das novas redes sociais e nos dias em casa a trabalhar junto com a família (se o conseguirmos fazer sem enlouquecer, claro). Quase como se estivéssemos na vertigem de uma grande descoberta…

Naturalmente que para conseguir uma completa apreensão destes conceitos, pressupõe-se uma abertura e recetividade a alguns dos aspetos mais básicos da nossa existência, como a introspeção, a reflexão, as relações humanas e sentimentais, colocando em segundo plano outras necessidades como o poder e o status social. Não acredito que o nosso estádio de evolução humana ainda o permita na sua totalidade, mas para lá caminhamos, mas acredito ser o momento de repensar os nossos conceitos, a nossa forma de fazer e tudo o que rodeava o nosso dia-a-dia como certo e inevitável. Ou talvez, somente usando as palavras de Agostinho da Silva: “Não trabalhe nunca; por favor esteja sempre ocupado”.