O tempo em tempos de Covid-19

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Antes da pandemia tomar conta das nossas vidas, muitos de nós tínhamos uma retórica e sentimento constante de agendas excessivamente ocupadas com compromissos profissionais, familiares e sociais. Tudo mudou e o tempo chegou de uma maneira antes desconhecida. Sem bater à porta e para ficar.

Temos hoje mais tempo devido ao confinamento parcial, com logísticas minimizadas e algumas obrigações facilitadas ou dissipadas. Criámos forçosamente o hábito de utilizar exatamente o mesmo espaço físico para fazer uma reunião, uma refeição, uma discussão, uma aula dos nossos filhos, um momento de reflexão religiosa. Tudo isto com uma capacidade de aproveitamento excecionalmente mais complexa. Perdemos o conceito do nosso tempo pois a total privacidade, em grande parte, foi-nos retirada. Dividimos o espaço constante com família e amigos – espaço físico, temporal, emocional, psicológico – pois os nossos círculos de confiança passaram a círculos também eles de check-in diário quanto ao nosso estado de saúde. Sentimos uma pressão imensa para maximizar tempo numa estrutura totalmente nova com teletrabalho, distanciamento social, máscaras obrigatórias e stocks pessoais de álcool gel em quantidades jamais imaginadas.

Se Kafka vivia sob a lógica do tempo como capital e maximização da sua utilização sob pena de ‘estragar a vida’, espero sinceramente que não apliquemos essa mesma lógica aos meses passados e acima de tudo, aos meses que temos à nossa frente. Esperam-nos meses difíceis, de ainda maior frustração, pois o tempo parece ter perdido sentido. Encontramo-nos sedentos de uma vida ‘normal’, como a conhecíamos. Em que o exato dia da semana se sentia relevante, em que se contava o tempo para férias, fim de semana e feriados. Mas o vírus está no mesmo lugar em que estava no dia antes do Estado de Emergência ter sido decretado. Não nos esqueçamos disso. O tempo como o conhecíamos não voltou (ainda) e provavelmente irá tardar (até uma vacina ou tratamento serem descobertos, para os quais a ciência trabalha a todo o gás). O ‘normal’ deixou de o ser.

Estamos no início do ajuste ao ‘novo normal’. Einstein e a sua teoria da relatividade do tempo nunca nos fizeram tanto sentido. O tempo é relativo – iremos senti-lo de maneiras diferentes consoante e mediante as circunstâncias vividas. Essa é a nossa grande lição. E aceitando esta premissa, o caminho não pode ser o do esgotamento do tempo na sua lógica de capitalismo triunfal de maximização de recursos. O desafio encontra-se em como utilizar e interpretar o tempo daqui em diante, tanto do ponto de vista pessoal e de preservação da saúde mental e física individual mas também do ponto de vista da eficiência para a economia e os empregadores. Redescobrir um desaceleramento forçado que talvez fosse necessário em qualquer circunstância. Os tempos pré-pandemia foram para muitos tempos de burnout, de esgotamento, de pressão desmesurada, de acesso constante ao trabalho e obrigações por via do acesso tecnológico. Será que este tempo que nos é hoje apresentado chegou como estado de graça? Como oportunidade para nos recolocarmos como sociedade e reajustarmos fenómenos que, de há muito, precisam da nossa atenção. E assim, será que inesperadamente encontrámos a beleza em tempos de tanta incerteza? Será que podemos, agora, dar tempo ao tempo?

Em vez de esperarmos voltar a uma lógica de maximização constante de cada minuto das nossas vida sem pensarmos ou refletirmos. Será que nos podemos permitir interiorizar este tempo. Como tempo de transformação, tempo de fazer o bem a nós mesmos e aos outros, tempo de reflexão ou simplesmente tempo de sentir o tempo e tudo que ele nos traz. ‘Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.’ – José Saramago.