Um Deus para cada homem – Breve ensaio sobre a dúvida

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12 Angry Men – 1957 ‧ Drama/Crime ‧ 1h 36m

Quando um filme ou um livro me interessa verdadeiramente gosto de abordá-lo pelo menos duas ou três vezes. É curioso que a visão que tenho da primeira vez nunca é exatamente a mesma que da segunda e menos ainda da terceira. E esta moldura de perceções, muitas vezes ambivalentes, acha-se em consonância com a abundante riqueza de novos elementos, só possíveis depois de reflexionar sobre os vários pontos que vão indagando a mente e o espírito. Esta é, na minha opinião, a riqueza da arte.

O filme, uma narrativa fluída, 99% passada numa sala, traz uma roupagem figurada de uma visão analítica, de cariz psicossociológico, que em tudo se prende com as ciências sociais, nas quais o direito, como ciência multidimensional, não se pode apartar.

Transporta o desempenho de 12 personagens, indissociável das suas vicissitudes, vivências, experiências pessoais, padrões, sensibilidades, sentimentos, na determinação dos seus atos em geral e do ato de julgar em particular.

O filme começa girando em torno de uma mesa, para saber exatamente o que cada jurado pensa acerca de um homicídio. Há muitas interrupções. Cada um tem um discurso centrado em si mesmo, onde quase todos os argumentos vão sendo desconstruídos pouco a pouco. Através de juízos próximos ao senso comum, aparentemente toda a gente acha que o rapaz é culpado, menos um, que começa a argumentar.

Os conflitos intensificam-se. Eles precisam discutir sobre os factos. As evidências começam cada vez a ficar mais fracas mediante o poder da argumentação. O que os personagens vão expressando tem peso. Aprendemos sobre o emprego de cada um, o bairro, as vivências e a infância. Não irei detalhar sobre a representação de cada um, seria exaustivo e nem sequer o propósito desta resenha. Em síntese, temos as várias características da personalidade humana espelhadas nos diversos personagens, que vão disparando gatilhos: o ego, o orgulho, a frieza de carácter, o preconceito (de origem social), a discriminação, a opressão, o racismo, o humanismo, a sensibilidade e o sentimento. Onze contra um, percebemos como é difícil estar contra uma multidão. Não temos elementos probatórios que atestem com certeza a culpabilidade do suposto autor do crime. Na mesa está em debate a presunção jurídica Iuris Tantum.

Para além do opositor, um dos personagens que me prendeu mais a atenção foi a do jurado nº7. Ele quer sair dali o mais rápido possível porque quer ir a um jogo de basebol, por isso vota de acordo com aquilo que acha que o vai tirar daquela função o mais rápido possível. Podíamos debater se temos ou não uma sociedade espelhada no jurado nº7, que se instala na (in)consciência do lugar que ocupamos. Trabalho não é posto, mas acabaríamos, de algum modo, por nos espelharmos todos um pouco nos 12 jurados.

Uma outra passagem do filme que para mim se destaca é transposta na tomada de consciência, quando todos se posicionam de costas uns para os outros, perante o preconceito e a obstinação irrazoável de um. Ninguém tem a certeza da verdade, mas persiste a dúvida razoável e logo a inquietação, essencial para a libertação do erro na formação de convicções. Entre a lógica individual e a lógica coletiva, entre o protagonismo individual e o protagonismo coletivo começa a brotar a formação de consensos.

Em sinopse, como breve apontamento, quando todos vão embora e as luzes se apagam, fica só a consciência solitária a monologar consigo própria e o julgador também é julgado. Os jurados servis da sua própria análise, e o acusado, indigno e despojado de qualquer retidão de carácter, liberta-se da pior prisão. O trabalho mais árduo de julgar alguém impenderá. São os precedentes que lhe servirão de linha norteadora e que o acompanharão pelo resto da sua vida, dentro ou fora de grades. Uma espécie de condenação dentro da condenação, que foge ao tempo cronológico, feita de amarras mentais.

Serão precisas despir muitas vestes para abraçar a difícil missão de julgar. Formulamos que a tarefa do julgador, numa abordagem exógena é a tarefa da explicação do sentido.

Julgar passa por julgar-se, ser juiz de si próprio, avaliar-se a cada momento e instante, passo a passo, milímetro a milímetro, porque na sua imparcialidade pode estar a diferença entre um culpado e um inocente, formada na convicção que se pretende plena e não envolta de inverdades. Certo é que nenhuma decisão pode ter dois pesos e duas medidas. Lidar com a vida humana é decidir sobre como ficar numa espécie de limbo, entre o bem e mal, entre a cruz e a espada, sem escapatória, onde os meios termos, por mais equitativos que se afirmem, nunca parecem ser suficientemente equilibrados.

Para que é que isto abre portas? É preciso parar para refletir. Desconstruir os dogmas, abrir espaço para a discussão saudável. Parar de receber com as mãos fechadas, de colocar as nossas próprias espectativas no outro e nos paradigmas da nossa realidade. Procurar a intencionalidade no sentido das coisas. Urge colocar a esperança em lugar do medo, em corações mais abertos. Não esperar que a mudança se faça, ser a própria mudança. Voltar-se para si e avaliar-se na alteridade do eu e do outro, como único caminho. Perceber que nós próprios temos as chaves daquilo que tanto queremos abrir. Que temos essa capacidade e que tudo isso está aqui dentro. Do lado de fora ficam as fechaduras e as travas mentais. Voltarmo-nos para nós, para as nossas próprias incertezas e receios é uma forma de compreender o outro. Nem sempre é um processo simples, mas é um processo possível e vale a pena.

Parafraseando Sartre, “O inferno são os outros”. Antes de tomar qualquer decisão, não somos nada. Vamo-nos moldando a partir das nossas escolhas e toda essa liberdade resulta em muita angústia. “O problema não é meu, o problema não sou eu, o inferno são os outros”. É a partir deste processo dialético, de diálogo, que consiste na procura de elucidações, que surgem diferentes modos de pensamento e surgem as contradições. O incomodo não consiste na retirada de liberdade que os outros nos proporcionam, mas na lembrança a todo momento, de que, sendo livres, somos responsáveis por tudo que fazemos. É para este quadro de inquietações que este filme nos remete. É preciso transcender limites. O limite não entendido como barreira, mas como espaço de trocas, de intercâmbio, ligado às ideias de impermeabilidade.

Esta necessidade de transposição fica clara na metáfora da pele e da transpiração, registada ao longo da pelicula, pela elevada temperatura meteorológica. A pele marca o meu espaço, é uma situação de encontros. Vemos que as leis não são só, ou tanto, para gerar ou impor limitações, servem sobretudo para criar possibilidades. Possibilidades de diálogo e de opiniões a todo o instante, sob a égide do poder participativo de todos e de cada um.

12 Angry men é um filme atual que celebra a vida e as suas possibilidades. É uma homenagem ao poder da comunicação, da lógica, da argumentação, da persuasão, que nos conduz a novos sentidos na procura e interpretação da verdade.

Creio que esta frase de Ruth Levitas nos faz um sumário sagaz do sentido do filme: “Quando não há esperança de realizar uma utopia somos impelidos pelo que é possível imaginar, não pelo que é possível imaginar como possível.”

Frases-chave do filme para reflexão:

In dúbio pro reu

“Podemos estar a deixar um homem culpado ficar livre.”

“Mas nós temos uma dúvida racional e isso é uma coisa muito valiosa no nosso sistema.”

“Nenhum júri pode considerar um homem culpado se não tiver certeza absoluta.”

Acerca do pragmatismo dogmático

“Uma pessoa que diz que vai matar outra é porque realmente vai matar. Não, é porque está de cabeça quente.”

Menos prisões, mais escolas?

“Porque é que você tem de ser tao educado o tempo inteiro? – Pelo mesmo motivo que você não é, é como eu fui criado”.

Comunicação vs. informação

“É a vida de uma pessoa que esta em jogo, vamos conversar.”