Mata-me se me tens amor

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“Senhoras e Senhores Deputados, muito bom dia. Está aberta a sessão. Peço aos senhores agentes da autoridade o favor de abrirem as galerias ao público.” Inicia assim a brilhante peça que tive oportunidade de assistir este mês: “Guião Para um País Possível”, no Teatro Carlos Alberto, Porto. A linguística discorrida e com curiosas sobreposições
textuais, reúne intervenções parlamentares dos últimos 50 anos, desde a Assembleia Constituinte de 75, até à crise pandémica, abarcando um panorama geral da nossa democracia. O insólito está presente, bem como a tensão e a esperança, no plano das possibilidades, mas este território é também marcado por ausências, do muito e do quase-nada que se fez e vem fazendo em matéria de direitos humanos, de lá para cá.
Introito feito, em Portugal, surge pela primeira vez no Código Penal de 1982, (artigo 153.º), sob a epígrafe “Maus tratos ou sobrecarga de menores e subordinados ou entre cônjuges”, a criminalização dos atos de violência doméstica. Temos de considerar os princípios gerais que norteiam o sistema jurídico português em geral, no que concerne à regulamentação penal da violência doméstica. O nosso sistema de direito penal baseia-se no princípio da legalidade, construído na base do princípio da dignidade humana. Reflexo para o sistema penal é o fato das penas de prisão terem como moldura máxima os 25 anos, sendo a finalidade das penas a prevenção, temos
ausente a pena de prisão perpétua. O nosso ordenamento jurídico acredita na ressocialização do infrator, e daí a liberdade condicional. Os tribunais aplicam geralmente penas leves e a prisão é frequentemente suspensa (cumprindo o arguido/a determinadas condições propostas pelo Tribunal).
A sensibilidade do tema remete-nos indubitavelmente, para aspetos do comportamento e seus processos mentais. “Mata-me, se me tens amor”, esta parece ser a mensagem subliminar (permissiva) que a vítima (inconscientemente) transmite ao agressor. A missiva atinge o seu destino no cérebro humano subconsciente e lá dança a sua moda a seu bel-prazer. “O mundo é um palco e a vida um jogo de som e de fúria, representado
por um louco” (Erasmo de Roterdão). Mata-me doce(mente), uma e outra vez, com odes de raiva e prevaricação. Serve-te do meu manto escuro para que olhos avalia(dores) não alcancem a complacência do “nosso” crime. Cúmplices ambivalentes? Se queres viver porque não queres a vida? Bem, temos um histórico coletivo do qual não nos podemos apartar. A nossa sociedade tende a romantizar os atos de ciúme e de violência passiva/ativa nas suas diversas formas, considerando a base essencial de uma relação amorosa, mas isso não é, nem nunca foi, amor. No que toca à criminalidade, nenhum ato de violência pode ser romantizado. Não sendo exclusivo, o crime de violência doméstica está grandemente relacionado com as condutas de cônjuges, ex-cônjuges, relação de namoro ou relação semelhante à dos cônjuges. Importa enfatizar que o abuso numa relação, não começa com violência física ou ameaça de morte, o que não significa que a dor e o trauma sejam menos intensos ou perturbadores.
Aliás, pode até dar os primeiros sinais com o “Love bombing”, (síndrome de personalidade narcisista) e posteriormente ou alternadamente com o Gaslighting, para aproximar e envolver a vítima de tal forma, fragilizando-a e prendendo-a a estes psicomanos de alto escalão. Desequilibrados/as, ausentes de si próprios/as, whatever, uma relação é uma maratona, não é um sprint. Assim sendo, alerta máximo aos primeiros sinais, eles
estão sempre lá e não devem ser ignorados nunca. A realidade não muda, o que muda são as lentes de quem vê, na esperança vã de “quando isto amainar, vai ficar tudo bem”, ou “é só uma fase”. Só que não! A nossa mente, mente. Vivemos o passado e o futuro na esperança de mudar o presente. Nós estamos a viver o hoje! Ninguém pára o vento e a metáfora é apenas para não extrair a fé e a dignidade da vítima enquanto pessoa, capaz e digna, de atrair relações saudáveis no seu contexto relacional.
Bom, carácter ou transtorno psicológico, a psicologia forense com as suas características adequadas, será a prova pericial e cabal na definição de linhas diretrizes na identificação/definição do infrator, ajudando a nortear o combate a este tipo de crime. Desajuizado da minha parte seria discorrer sobre os meandros intricados da psicologia, pois muito haveria a dizer pelas mãos acertadas dos peritos e especialistas, mas há um trivial de senso comum no qual sempre nos apraz. Sabemos, ou deveríamos, que um relacionamento tóxico/abusivo é prejudicial para a saúde mental, emocional de todos nós.
O direito penal esquece ou omite muitas realidades, oriundas do foro psicopatológico, muitas vezes irreversíveis. Ter saúde mental é muito mais do que apenas a ausência de doenças ou transtornos mentais, relaciona-se com a qualidade de vida, que muitas vezes nunca chega a ser recuperada na totalidade nos casos das vítimas de violência doméstica, em virtude dos encalços produzidos pelo agente agressor, polarizados à posteriori em diversos problemas, como ansiedade, desenvolvimento de fobias, síndrome de pânico, stress pós-traumático, depressão e outros transtornos do foro psíquico.
Em jeito de conclusão, na minha modesta opinião, a morosidade processual, nomeadamente no processo penal,
constitui-se como uma preocupação que deve ser coletiva. As suas causas são atribuídas a vários fatores, que não importam muito para aqui. O que importa é a tónica que continua a enfasar não no ideal da celeridade processual, (sabemos, prejudicial à justiça), mas no da realização da justiça em tempo útil, sob a justificativa de uma melhor proteção da dignidade humana, a todos os atores no processo penal, mas subvalorizando não raras vezes, a dignidade humana da vítima, para acautelar antes de mais, a dignidade do potencial agressor/a.
Estamos perante um crime violador dos princípios básicos dos direitos humanos, portanto, na esfera mais elementar dos direitos, revestindo-se de crucial reflexão no que toca ao desenvolvimento de políticas muito responsáveis de intervenção. O direito penal cuida de acautelar a dignidade da pessoa humana. Mas de que falamos? A vítima de violência doméstica, sublinhe-se vítima, é alguém que sofreu um atentado à sua integridade física ou mental e isto não pode ser subvalorizado! As penas não refletem a gravidade dos atos e a sensação de impunidade ou de punição leve é grandemente difundida para a comunidade.
O crime de violência doméstica, na prática teorizada, não existe. Não existe como crime devidamente valorado, diferente da violência doméstica não existir de todo. Sucede que na maior parte das vezes, este, é praticamente impune à luz das leis que nos regem e do sistema que nos salvaguarda. Um crime de violência doméstica vale menos de meio quilo numa balança dispare e desregulada que coloca frente a frente agressor e vítima (é preferível salvar um culpado do que condenar um inocente).
Acontece que em 99% dos casos (passo o exagero, se exagero), não há inocentes. O sistema quase sempre sabe, nós sabemo-lo. É uma amostra singular da locução “a lei existe porque é lei, não porque é justa”, porque convenhamos, a maior parte dos infratores por este tipo de criminalidade vaporosa, seguem por aí possantes e refalsados, empreendendo as suas investidas vezes e vezes, aproveitando qualquer frincha descuidada para se infiltrarem, deixando um rastro nauseabundo de merda por todo e qualquer lugar onde passam (toque de Midas subvertido). Afinal, o crime compensa…A sociedade (diga-se, com o seu fundamento), descrê muitas vezes da justiça e não cabe condenar.
O processo de ressocialização urge revisitar-se. A tónica (do protecionismo) tem obrigatoriamente que transmutar os seus domínios. A vítima será sempre vítima, o/a agressor/a será sempre agressor/a. O quê, e quem pretendemos tutelar? Não há mão pesada na justiça portuguesa nos casos de violência doméstica. Uma grande maioria dos casos são arquivados por falta de provas, ou desvalorização delas, já para não falar nas diferenças de
tratamento dos arguidos mediante a sua classe social/económica. A prisão preventiva é aplicada residualmente, sendo o mais comum a aplicação da pena do Termo de Identidade e Residência. E sim, os agressores têm privilégios de pena suspensa após julgamento e condenação.
Penas acessórias são escassas, quando em minha opinião, a proibição de contacto com a vítima de imediato (por exemplo) deveria ser fundamental. Esta é, infelizmente a realidade dos tribunais. E o que dizer disto senão a tradução da frustração da vítima e a vitória do agressor?
A agressão psicológica é largamente desvalorizada, quando a investigação judicial se centra na perícia forense do dano físico, secundarizando os danos psicológicos em que as perícias não alcançam. Atente-se que a maior parte dos casos deste tipo de crime são sobretudo de violência psicológica, alternando com a violência física. As condenações efetivas dos infratores têm uma expressão residual e isto não pode ser só um mero elemento estatístico, tem de ser alvo de crítica analisada com profundidade, de olhos bem abertos.
O sistema trata de resolver, mas não é sensível, fruto das próprias raízes culturais que integra. Trata-se antes de mais, de um problema de mentalidade, um estado psíquico social, que urge sanar antes que se fechem as galerias ao público.