“Pare, escute e faça contas!”- O que fazer para se preparar para a crise que 2023 promete

Ângelo Dias é contabilista certificado, administrador judicial, mediador de recuperação de empresas e empresário. Acompanha e dá apoio à Golden Project Consulting, empresa de Contabilidade e Consultoria, à Ângelo Dias SAI (Sociedade de Administração de Insolvências) e à 3VIA, criada para dar apoio na Compra e Venda de Sociedades, bem como aos empresários, em projetos de revitalização e reestruturação das suas empresas e seus negócios, para prestar apoio e conhecimento ao novo investidor. Tendo em consideração que a percentagem de insolvências irá aumentar em 2023, Ângelo Dias deixa alguns conselhos aos empresários e às famílias: não entrar em incumprimento é fundamental, para renegociar os planos prestacionais e existe solução, antes da insolvência.

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Como surgiu a 3VIA?

A 3VIA é uma empresa que ajuda empresários e investidores, na compra e venda de sociedades. O objetivo é
que as empresas sejam reestruturadas e vendidas enquanto unidades empresariais como um todo, mantendo
inclusivamente os ativos humanos, e não como uma empresa cuja existência chegou ao fim e seja
vendida peça por peça. O Código das Insolvências e Recuperação de Empresas (CIRE) prevê, precisamente, o
modelo de revitalização e recuperação de empresas, para que possam continuar a existir como estabelecimento estável e a contribuir para a economia.

Parece-lhe que tudo se está a conjugar para virmos a enfrentar uma crise económica?

Todos os fatores se congregaram para que tal acontecesse: temos um cenário inflacionista descontrolado; a crise
energética; as taxas EURIBOR também estão a subir – em outubro do ano passado, a EURIBOR a seis meses, que é a taxa de referência para o crédito habitação, estava nos 0,6% negativos e, atualmente, situa-se nos 2,3%, sem falar no spread bancário, que também acresce ao valor final da prestação; as cadeias de distribuição ainda não recuperaram das dificuldades de obter matéria-prima, como semicondutores e componentes vários,
o que obriga empresas como a AutoEuropa e outras de grande dimensão a parar por falta de matéria-prima; a falta de mão de obra, o que não permite apostar numa política de salários mínimos mais altos, como se pretende, porque não há mão de obra disponível. Falta ainda acrescentar que ainda existem moratórias bancárias e que a realidade das empresas nacionais (PME) é de que 3 em cada 10 empresas têm os capitais próprios negativos e não cumprem de forma reiterada o Art.º 35 do CSC. Isto só é possível porque temos uma falha de fiscalização por parte das entidades competentes – a de passarmos a ideia, abertamente, de que qualquer
pessoa pode ser empreendedora ou empresária, e que, para tal, basta constituir uma empresa com capital social de um euro. Não tendo capital mínimo definido na Lei, estas atividades acabam por vir “estragar” o mercado, seja qual for a atividade de que estejamos a falar, exatamente porque não se tem a noção clara daquilo que é uma empresa e do que tem de existir estruturalmente, como base, para a empresa funcionar.

Falamos de desconhecimento da parte de quem quer ser empresário?

Em Portugal, temos uma situação que não tem paralelo no resto da Europa: se eu quiser exercer uma atividade de cabeleireiro, tenho de ter uma carteira profissional, bem como para mediador de seguros. Mas não tenho de ter carteira profissional para abrir uma empresa de serralharia, ou de construção civil ou outras áreas de negócio. Basta “entrar” nas Finanças, presencialmente ou via site, e “coletar-me” (dar início de atividade empresarial). A partir daí, sou empresário, mas as minhas dúvidas sobre o melhor regime fiscal que se aplica ainda persistem, por exemplo, entre outras situações. Isso acontece por sofremos de uma literacia financeira, fiscal e económica muito má. Desta forma, lançamos para o mercado pseudoprofissionais e/ou pseudo-empreendedores, que
ninguém validou ou avaliou.

Sem literacia económica, como se pode fazer uma boa gestão da empresa?

Desde sempre que afirmo que as melhores gestoras que poderemos encontrar na vida são as nossas mães e avós. Elas gerem a casa com base no “dinheiro em caixa”, se há dinheiro, gasta, se não há dinheiro, não gasta. Esta é exatamente a noção que tem de ser passada aos nossos gestores de empresas. Mas, nas empresas, a responsabilidade é muito maior, temos de contar com um conjunto de stakeholders – bancos, leasings, renting, Estado, fornecedores – e todos eles fazem a diferença na gestão da empresa porque, a partir do momento
que existem, a empresa tem de conseguir pagar-lhes o que é devido. Nesse sentido, uma empresa não pode ser gerida no princípio do “tenho dinheiro gasto, não tendo não gasto”, porque a empresa, mesmo não tendo dinheiro, continua a ter obrigações para com os que com ela se relacionam. Neste mês de Novembro (no limite) ocorrem as aprovações dos orçamentos das empresas e, quando se é empresário, deve-se fazer sempre um
orçamento de base zero, contabilizando todo e qualquer tipo de despesa que se tenha. Ainda assim, este é um ano difícil para fazer o orçamento, dada a incerteza que existe sobre os aumentos que as empresas podem ter de suportar, nomeadamente na questão da crise energética, por exemplo. Como se faz um orçamento se não se sabe com o que contar?

Nas suas palavras, é muito difícil vislumbrar empresas que detenham uma estrutura financeira e de gestão capaz de ultrapassar estas dificuldades. Onde entra a importância de um consultor, junto destas empresas?

As empresas não necessitam, algumas delas, de um consultor ou diretor financeiro, a tempo inteiro, mas não podem dispensar a sua existência, considerando que o nosso tecido empresarial é constituído maioritariamente por nano, micro, pequenas e médias empresas. Todavia, quando o contratam, não devem considerar aquilo que vão pagar como um custo (embora, quando o fazem, efetivamente repercute-se na sua tesouraria), mas
entender que este profissional vai ajudar a empresa, acrescentando-lhe valor e colocando a empresa numa condição que permite que esta escale as suas vendas e possa crescer de uma forma sustentada e consolidada. Não interessa movimentar muito dinheiro se o empresário não entender o valor daqueles números, ou seja, se não houver lucros. Na minha opinião e por experiência, diria que existe informação e know-how disponível
no mercado para ela ser produzida e para ser interpretada e à disposição das empresas, mas por vezes temos pessoas à frente das empresas que entendem que os seus “números” não são os números do consultor, não são os números do contabilista certificado nem do diretor financeiro. Não entendem porque é que apesar de muito
faturarem, não conseguem ter lucros e reter dinheiro nas entidades.

Já foi noticiado algumas vezes que em 2023 poderá existir um aumento de insolvências. Este cenário é de esperar, de facto? É possível evitar este cenário?

Sim. A expectativa, para Portugal, é que haja um aumento de 2%, ainda este ano, no que respeita à insolvência. Para 2023, estamos a falar de 20% de processos de insolvência, segundo um estudo da Allianz Trade. Na última crise, há cerca de 10 anos, só o nosso país é que estava sob a alçada da Troika. Atualmente, a crise é globalizada. A Europa está mergulhada numa recessão. Numa situação como esta, em que as exportações podem diminuir consideravelmente, bem como o consumo interno, o equilíbrio entre dívida pública e PIB deixa de ser
possível. É fundamental que as empresas compreendam a altura que estamos a atravessar e reconheçam como crucial “parar, pensar e fazer contas”, ou seja, está na hora de as empresas fazerem o trabalho de casa, repensarem os seus negócios, ajustando à “nova realidade” e reestruturarem as suas tesourarias (provavelmente irão receber menos do que foi faturado). Pois o futuro, que já é hoje, vai exigir das empresas muito rigor e controlo de despesas e não há lugar a improviso e facilitismo.

Existe alguma forma de se evitar uma insolvência recorrendo a mecanismos extrajudiciais?

Sim. As empresas contam com o PER – Processo Especial de Revitalização e as famílias com o PEAP – Processo Especial para Acordo de Pagamento (caso queiram manter o seu património: casa, carro e outros pertences). No entanto, importa referir, antes de tudo, que, para que o uso destes instrumentos seja possível, não se pode estar a incumprir. Assim, é fundamental que sejam os “potenciais incumpridores” a tomar a iniciativa e não esperar
que seja um qualquer dos seus credores a apresentar um processo de penhora, execução, injunção ou qualquer outra forma jurídica. Em ambos os casos, quer os particulares, quer as empresas, nos processos acima mencionados, que servem fundamentalmente para que se entre em negociações com os credores e se consiga chegar a um acordo de pagamento, de forma a não se perder património – que é o que acontece em caso de
insolvência (sem aprovação de plano – dado que também é possível apresentar um plano dentro do processo de insolvência) e incumprimento prestacional. Dos vários processos que tenho, quer de empresas quer de particulares, a taxa de sucesso é muito elevada, ou seja, os processos não são casos perdidos para quem queira ter oportunidade de liquidar as suas obrigações.

Quando lhe parece que a estabilidade regressará à economia?

Eu falo sempre com base naquele que é o atual cenário da economia portuguesa, e europeia, porque nós não estamos dissociados dela. Não acredito que exista um problema sistémico bancário, até porque o Banco Central Europeu está atento à questão. No entanto, está particularmente atento à Alemanha e à França, os dois motores da economia europeia, que estão a braços com um mau momento económico. Portugal acaba por também ser afetado, porque dependemos do exterior e não temos empresas estruturadas e consolidadas, com robustez económico-financeira. Além disso, e como já mencionei, se 3 em cada 10 empresas nacionais têm os capitais próprios negativos, de forma reiterada (ano após ano), temos um problema estrutural. Com este enquadramento, eu penso que só conseguiremos inverter o ciclo em meados de 2024.

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