Prevenção de doenças – soluções no sistema de saneamento

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Focando no copo meio cheio, o tempo de reflexão durante a pandemia em que nos encontramos é valioso. Tendo eu estudado engenharia civil, reflito sobre maneiras de nos prevenirmos contra doenças através de infraestrutura mais resiliente. No que respeita ao sistema de saneamento urbano, como nos podemos preparar melhor para eventos de grande precipitação, que levam ao transbordo das águas pluviais e de esgoto não tratadas para a via pública? A exposição humana a esta água pode levar a infeção por bactérias e vírus que se propagam pelo esgoto (já se estuda a potencial disseminação do COVID-19 pelo contato com fezes).

Dado que nos encontramos numa época de alterações climáticas, onde os eventos extremos acontecem com mais frequência e mais potência, é necessário ter em atenção todos os meios com que doenças se podem propagar e, quem sabe, voltar a afetar a economia global.

O sistema de saneamento

Em Portugal, os loteamentos têm um pequeno reservatório que recebe a água da chuva, dimensionado de acordo com o código de saneamento português, que descarrega a água para a rede municipal de águas pluviais, com uma determinada vazão (volume de água que passa pela área do tubo). No entanto, este reservatório não costuma ter a dimensão suficiente que tolere a quantidade de água vertida em dias mais chuvosos, potenciando o escoamento da água para o sistema público sem qualquer controlo.

Por outro lado, os sistemas de saneamento mais antigos juntam as águas pluviais com as de esgotos, o que não é ideal, uma vez que:

– O sistema de tratamento de águas torna-se mais dispendioso, dada a necessidade de tratar as águas pluviais da mesma forma que tratamos as água de esgotos, sendo o primeiro habitualmente mais barato;

– Quando chove torrencialmente e o sistema atinge a sua capacidade máxima, a água pode transbordar pelos bueiros das vias públicas, e até residências direcionadas à classe alta estão sujeitas a levar com este fluxo, através dos seus sistemas sanitários (nem os ricos escapam!).

Como exemplo, no Reino Unido onde eu resido atualmente, é frequente encontrar este sistema de águas combinado, dado que muitas cidades não tiveram planeamento de águas pluviais, na altura em que o sistema de esgoto foi criado. Os terrenos tinham muito mais permeabilização e, desde então, começámos a construir intensamente, sem nos focarmos no escoamento da água pluvial – construímos prédios, estradas e calçadas que impedem o caminho natural de escoamento da água. Não sendo esta água absorvida pelo solo, correrá então pelos alcatrões e cimentos. Para tal não acontecer, e dada a dificuldade em criar um novo sistema completamente separado em grandes cidades, os engenheiros decidiram criar um sistema de águas pluviais, ligado diretamente ao sistema de esgotos. Em algumas zonas antigas de Portugal, onde é difícil realizar atualizações completas dos sistemas (como é o caso da Baixa de Lisboa), também encontramos este sistema combinado.

Como indicado anteriormente, tal solução não é ideal, dado que os corpos de água de superfície, quando contaminados, podem ser prejudiciais à saúde.

Mas nem todas as situações são graves. As zonas urbanas mais recentes integram sistemas de esgoto separados, e eventualmente o sistema de código de saneamento português será atualizado com outras diretrizes (algo que não acontece desde os anos 90). Por outro lado, atualmente existem sistemas que regulam as descargas de água de lotes para a rede pública, contribuindo para a atenuação e até eliminação de cheias em ambientes urbanos.

Soluções

Dada a minha especialidade ser em tecnologia, é de uma destas soluções que aqui falo. A StormHarvester é uma empresa focada na instalação de tanques pouco complexos e acessíveis em lotes individuais, controlados por um software inovador. Este combina dados de precipitação históricos e previsões meteorológicas com a capacidade do sistema de águas municipal, para prever a quantidade de água que deve ser retida ou descarregada de cada lote e em que momento. Aciona bombas e válvulas ligadas ao sistema de acordo com as recomendações do software e integra assim uma solução que engloba todo o ciclo rede de águas pluviais e esgotos, desde o momento em que há precipitação num lote, ao tratamento final das águas.

Como exemplo, podemos imaginar que durante um dia de precipitação intensa, o reservatório de um lote enche em poucas horas. Se tiver um tanque StormHarvester, este reserva maior quantidade de água da precipitação e procede à descarga apenas quando o sistema municipal não estiver na sua capacidade máxima. Ao existirem mais tanques integrados no mesmo, estes são descarregados em diferentes momentos, reduzindo bastante o pico máximo de escoamento de água, o chamado pico de runoff.  Por outro lado, em tempos normais, a água que se encontra nesse tanque pode ser utilizada para fins não potáveis dentro do lote, reduzindo assim os custos de consumo de água.

Ao ser utilizado por empresas de saneamento, o software do StormHarvester otimiza a performance completa da rede, ao controlar não só lotes individuais, mas também outros reservatórios municipais, podendo também fazer a descarga horas antes da tempestade e prevenir que o sistema atinja a sua capacidade máxima durante e após a tempestade. De salientar que o software adapta os seus resultados a cada rede onde está integrado e, quanto maior o número de projetos individuais implementados com base neste sistema, melhor a sua eficácia.

Certamente que, mesmo utilizando este sistema, apenas criando tanques de dimensão exagerada, para eventos mais extremos, conseguiremos prevenir todos os casos de cheias.  No entanto, o StormHarvester já provou ter ótimos resultados em vários projetos. Um exemplo será um caso no Reino Unido, onde o sistema conta com uma previsão de 96% de casos de transbordo e uma redução de 30% desses incidentes.

Tecnologias inovadoras

O StormHarvester é um exemplo de “Internet das Coisas” (IoT), pois permite que se obtenham dados dos objetos e do ambiente através de sensores ligados à internet. O software é controlado por machine learning, o que permite processar estes dados e, ao longo do tempo, aprender como o sistema deve responder melhor a situações futuras. Esta gestão automática e inteligente de objetos, forma a base do desenvolvimento de smart cities, cidades que utilizam uma vasta quantidade de informação obtida por estes aparelhos, para melhorar os serviços e qualidade de vida dos cidadãos.

Oportunidades de negócio

Vejo aqui também uma nova oportunidade de negócio entre as empresas de saneamento e seus utilizadores, onde a empresa de serviços paga um determinado valor a quem retenha certos volumes de água provenientes de precipitações extremas. Os municípios têm como benefício a redução de custos com cheias, enquanto que os donos dos lotes têm um duplo incentivo: são pagos para usar estes sistemas e reduzem a sua conta de água, ao reutilizar o excesso do reservatório para consumo próprio.

Implementação antes da lei

A transição para smart cities ocorrerá lentamente ao impor leis específicas para a sua transição. Mas por que havemos esperar que a legislação se atualize para implementarmos ideias que beneficiam toda a comunidade? Projetos inovadores como o da StormHarvester são adotados quando existem benefícios económicos, sociais e/ou ambientais a serem captados. Fará sentido que estes empreendedores com ideias inovadoras, que nos ajudam a entender o que é possível fazer já hoje, participem no processo da criação de novas leis.

Continuarei a abordar tópicos relacionados com o desenvolvimento de cidades sustentáveis, e espero que vocês fiquem tão interessados por esta área quanto eu!

Patrícia Silva, emprendedora e especialista em sustentabilidade

Entusiasta por tecnologia e sustentabilidade, segue uma carreira internacional por 3 continentes. Trabalhou no centro da tecnologia em Silicon Valley, no desenvolvimento de projetos de energia renováveis, em construção sustentável e na área de remoção de carbono. Segue agora uma carreira a desenvolver e a apoiar startups na área de energia e ambiente e é voluntária em vários projetos de sustentabilidade e sociais. Tirou o curso de Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico e um MBA focado em Energia e Cleantech da University of California Berkeley, Haas School of Business.