“A desestabilização da UE existe, mas a opinião pública é favorável à existência desta comunidade”

Marta Temido sentiu o apelo da política ativa depois de ter integrado o Governo do Partido Socialista que estava em funções aquando da pandemia. Foi precisamente em 2020 que se tornou membro do partido. Agora, desempenha funções como eurodeputada no Parlamento Europeu, no grupo dos Socialistas & Democratas. Uma entrevista sobre a Europa, os seus valores e desafios, os direitos das mulheres nesta comunidade e a importância da participação feminina na política.

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Descreve-se como mulher, europeísta e progressista. Como se traduz isso no seu dia a dia de trabalho e de posicionamento político e social?

São três atributos que, na minha perspetiva, se associam a uma maior exigência autoimposta. Ser mulher na política é ter de “provar duas vezes”. Reconheço que trabalho bastante, o que não é necessariamente uma virtude. Não falo
de um tema se não o conheço, o que implica domínio conceptual, mas também capacidade crítica e de construção de pensamento próprio. Embaraça-me a ideia de dizer generalidades. Depois, há todas as questões de forma na comunicação; clareza e entusiasmo, requerem introspeção, reflexão, amadurecimento. Ser europeísta e ser progressista são, para mim, os dois lados da mesma moeda. “Unidos na diversidade”, um dos motos da União Europeia, é um lema progressista. A Europa de Schumann é um projeto de paz e prosperidade partilhadas; uma ambição coletiva, muito mais difícil de atingir do que uma simples ambição individual.

Que impacto lhe parece que a presença das mulheres na política pode trazer ao país e à Europa?

Espero que a presença das mulheres na política (se se pode generalizar deste modo, porque acredito mais em “traços de personalidade”, tradicionalmente associados ao feminino, do que na classificação biológica “homens” e “mulheres”) traga mais preocupação com as pessoas, com resultados concretos que melhorem as suas vidas.

Acredita que os direitos das mulheres podem estar verdadeiramente em risco, mesmo após largos anos de conquistas para as mulheres?

Não acho. Tenho a certeza. Mas não sei se a formulação exata é a de que os direitos das mulheres estão em risco ou antes a de que nunca estiveram seguros. Talvez tenhamos dado por adquirido algo que nunca esteve. Por populismo ou conservadorismo, assistimos ao crescimento de um medo irracional do “poder das mulheres”. Quem viu a série “Adolescentes”, compreende melhor aquilo a que me refiro. Não se trata senão de uma declinação de um medo do poder das minorias (aplica-se também aos imigrantes, aos diferentes, aos outros em geral). No fundo, de um medo de si próprio, de uma insegurança.

Qual tem sido o papel da União Europeia nesta luta relativamente à igualdade de género e à manutenção dos direitos das mulheres?

É um facto que, nas últimas décadas, a União Europeia realizou progressos significativos no domínio da igualdade de género, resultantes de atos legislativos, da integração da perspetiva de género em todas as políticas e da tomada de medidas específicas de empoderamento da mulher. Mas as disparidades de género persistem. Por isso, no início deste ano, a Comissão Europeia adotou o Roteiro dos Direitos das Mulheres, que proporciona uma base para o
desenvolvimento de medidas jurídicas e políticas específicas no quadro da Estratégia para a Igualdade de Género pós-2025.

Quais as causas que, a seu ver, se tornam particularmente relevantes atualmente? Qual tem sido o papel do partido europeu que integra relativamente à apresentação de soluções para estas causas?

Dou apenas dois exemplos daquilo que os Socialistas & Democratas, o grupo político no qual o Partido Socialista se insere, já fizeram e estão a trabalhar para fazer. Um exemplo do que foi feito é o da Diretiva sobre Transparência Salarial, em vigor desde junho de 2023, que determina regras para reforçar a transparência remuneratória, que os Estados-membros deverão transpor para os seus ordenamentos jurídicos até 2026.
A falta de transparência foi identificada como um dos principais obstáculos à eliminação da disparidade salarial entre homens e mulheres (cerca de 13%, em 2020, na União Europeia), com impacto de longo prazo na qualidade de vida das mulheres, no seu risco da sua exposição à pobreza e na perpetuação da disparidade salarial nas pensões pagas (cerca de 30%, em 2018).
Um exemplo do que falta fazer, é o da consagração direta do direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


A Europa corre, para muitos, riscos de desagregação interna, considerando a ascensão de forças de direita. Acredita que esta desagregação pode, efetivamente, ter lugar?

Apesar do seu contributo decisivo para o enorme progresso realizado em tantos domínios da vida dos cidadãos europeus nas últimas décadas, há um reconhecimento generalizado de que a União Europeia enfrenta uma crise existencial. Claro que a incerteza sobre o futuro da União Europeia está longe de ser nova. Mas sabemos como, nos tempos mais recentes, aquela angústia existencial se aprofundou.
Dentro da própria União Europeia, ganharam protagonismo as correntes nacionalistas, que defendem que a solução para os problemas enfrentados é uma alteração radical do paradigma existente, que, segundo dizem, poderá envolver duas alternativas: a reforma da União Europeia ou a sua refundação.
Na opção de reforma, que levaria à criação de uma “Comunidade Europeia das Nações”, os tratados deveriam ser alterados à luz dos princípios do reforço do respeito pelas soberanias nacionais, de mais espaço para a cooperação
intergovernamental, flexível, voluntária e revogável entre as nações, do alargamento da regra das decisões por unanimidade, da inversão do primado da legislação comunitária sobre a lei nacional e de uma leitura restritiva
do princípio da atribuição e da subsidiariedade, propondo-se ainda uma alteração dos poderes das instituições europeias.
Na opção de refundação, a União Europeia deixaria, simplesmente, de existir, sendo substituída por uma estrutura de cooperação económica, a “União Económica Europeia”, baseada em princípios de livre mercado, intervenção regulatória limitada e respeito pela soberania total dos Estados-Membros, com uma fase de liquidação da atual estrutura.
Estas ideias fazem parte de documentos apresentados e defendidos por forças de extrema-direita, que foram eleitas para governos de Estados-Membros e, consequentemente, têm assento no Conselho, e que também se encontram representadas no Parlamento.
A desestabilização e o enfraquecimento da União Europeia são os maiores riscos enfrentados. O apoio das opiniões públicas ao projeto europeu e a resposta das instituições europeias às expetativas dos seus cidadãos permanecem a
melhor resposta a estas ameaças. Note-se que, segundo o Eurobarómetro desta Primavera, verificava-se que 70% dos portugueses têm uma imagem muito positiva da União Europeia (43% dos europeus) e que 76% se lhe sentem profundamente ligados (63% dos europeus).