“Ser médico vai além da vocação da cura do doente, importa muito a sua qualidade de vida”

Denise Marruaz é médica fisiatra e trabalha tanto no Serviço Nacional de Saúde, como no setor privado. Em entrevista, esclarece as dúvidas que, por vezes, podem surgir à população que procura estes profissionais de saúde, realçando as várias áreas de atuação da Medicina Física e de Reabilitação (MFR), que vão muito para além da fisioterapia. Deixa ainda patente o impacto positivo que a MFR pode ter na qualidade de vida e no bem-estar físico e mental dos indivíduos.

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É médica fisiatra e desenvolve várias atividades, em diversos espaços clínicos. Sempre quis fazer da Reabilitação a sua área de atividade?

Sempre me interessou a ideia de promover a qualidade de vida e o bem-estar. Embora à vocação médica esteja aliado o desejo de cura, a verdade é que não só nem sempre é possível salvar os doentes, como muitas vezes, se apenas tentarmos curar sem ter em conta a qualidade de vida, não vamos ajudar a pessoa a ter uma vida feliz e realizada. A Saúde, por definição, é um conceito que vai para além do físico, implicando um bem-estar mental e social, e não apenas a ausência de doença. Nesse sentido, a Reabilitação sempre me despertou interesse dentro
das várias áreas da Medicina. Ao contrário de outras especialidades, a Fisiatria foca-se não só na cura, como na recuperação funcional e ganho de autonomia, dedicando-se à prevenção, diagnóstico e tratamento, com foco
especial na qualidade de vida. Também me atrai o facto de o doente ser nosso parceiro: ele contribui para a sua melhoria, não é apenas um agente passivo que se limita a tomar a medicação prescrita. A grande variabilidade de patologias nas quais a Fisiatria atua, o impacto que tem na recuperação, prevenção da doença, qualidade de vida e promoção da funcionalidade para tarefas do dia a dia e específicas (desportivas, profissionais ou de lazer), bem como o papel fulcral que representa na integração do indivíduo em sociedade torna a Medicina Física e de Reabilitação (MFR) numa das áreas da Medicina mais abrangentes, completas e interessantes, e a minha prática clínica enquanto médica Fisiatra extremamente gratificante.

Afirma que a “Reabilitação é um mundo”. Que mensagem está contida nesta frase? Em que áreas se pode aplicar a Medicina Física e de Reabilitação?

A Reabilitação é, de facto, um mundo. A maioria das pessoas associa à fisioterapia, mas vai muito para além dela. Muitas vezes o doente não procura o Fisiatra por desconhecer que a MFR aborda um leque tão variado e abrangente de patologias e intervenções terapêuticas. São exemplos disto a reabilitação aquática, na qual os indivíduos fazem exercício terapêutico dentro de água, com múltiplos benefícios nas mais variadas doenças; a desportiva, integrando também a prevenção de lesões; a cardíaca, que foca, entre outros, o recondicionamento ao esforço e a melhoria da tolerância ao exercício; a pediátrica, na qual estamos presentes durante todas as etapas
de desenvolvimento da criança; a pelvi-perineal, nomeadamente no tratamento da incontinência urinária; a reabilitação de pessoas queimadas e tantas outras. Na Fisiatria, além da prescrição medicamentosa, também se utilizam armas terapêuticas próprias, como agentes físicos, dos quais destaco o LASER, magnetoterapia, correntes
elétricas e ondas de choque. A prescrição de exercício terapêutico, individualizado e adaptado à pessoa e patologia, e levando sempre em conta as preferências do doente, constitui também um dos pilares essenciais da Fisiatria. No caso em específico da reabilitação cardíaca, nalguns casos, a evidência mostra que o benefício dum programa de reabilitação cardiovascular é maior do que o da medicação. Somos igualmente responsáveis pela prescrição de produtos de apoio e ortóteses, como andarilhos, canadianas, talas, cadeiras de rodas, próteses, produtos de comunicação alternativa e outros dispositivos. Outra vertente muito útil e cada vez mais desenvolvida da Fisiatria são os procedimentos ecoguiados. Através da injeção de fármacos guiada por ecografia, podemos tratar várias doenças e intervir no alívio eficaz da dor, evitando, em muitos casos, a cirurgia. Exemplos são as infiltrações, aplicação de ácido hialurónico e toxina botulínica (vulgarmente conhecida como botox). Estes procedimentos são úteis em diversas patologias, das quais destaco as do foro músculo esquelético, neurológico, dermatológico e da Medicina estética. Também a Mesoterapia, utilizada sobretudo no alívio da dor, faz parte das opções terapêuticas em Fisiatria.
Várias são as profissões técnicas que integram a equipa de reabilitação. A fisioterapia, sendo a que abarca um número maior de elementos, é também a mais conhecida. Mas também a terapia ocupacional e da fala têm um papel essencial. Áreas tão diversas como doenças do foro músculo esquelético (desde simples tendinites a grandes politraumatizados), neurológico (dos quais são exemplos AVC, lesões vertebro medulares, traumatismos crânio encefálicos), reumatológico, patologia vascular, doentes amputados, reabilitação após cirurgias várias, patologia cardíaca ou respiratória, neoplasias, problemas de deglutição, alterações da linguagem e tratamento da dor, são
todas da competência da MFR.

Que impacto tem a reabilitação na recuperação de quem a procura? De que maneira a Fisiatria pode favorecer a participação dos indivíduos em sociedade?

A Reabilitação tem impacto indiscutível na reintegração do indivíduo no seu meio pessoal, profissional e social. O plano terapêutico é sempre desenhado de acordo com as capacidades e interesses de cada doente, privilegiando-se
as tarefas que sejam significativas para cada indivíduo. Da mesma maneira, somos responsáveis por desenhar alterações no domicílio ou ambiente de trabalho que promovam uma maior segurança ou capacidade de realização
de tarefas, como por exemplo adaptações ao WC ou mudanças ergonómicas no local de trabalho. No caso de doentes com patologia crónica, ou várias comorbilidades, como os doentes neurológicos e os politraumatizados, a
integração na rede de cuidados continuados ou internamento em serviço de MFR hospitalar poderá ser extremamente benéfica. Alguns destes locais estão equipados com apartamentos modelo, utilizados para ensinos, treinos e exemplos de adaptações possíveis a fazer no domicílio. Noutros, existem centros de simulação para a condução de veículos adaptados. Personalizando o tratamento aos interesses e dificuldades de cada doente, bem como ensinando estratégias compensadoras na impossibilidade de recuperar certa função, não só estamos a promover uma maior adesão ao tratamento e a maximizar a probabilidade de uma melhor recuperação, como a contribuir para o Bem-Estar emocional e Saúde Mental do indivíduo. A MFR intervém no tratamento duma grande variabilidade de patologias, bem como na prevenção de doença e lesões (por exemplo as desportivas), usufruindo de inúmeras armas terapêuticas próprias. Apenas dando a conhecer estas vertentes à população geral, promovendo uma maior consciencialização das circunstâncias em que é útil a procura dum médico Fisiatra, poderemos melhor contribuir para servir os nossos doentes.

Que áreas da Fisiatria despertam mais o seu interesse? Alguma vez sentiu que ser mulher trouxe alguma dificuldade no exercício da sua profissão?

Pessoalmente, realizei as Pós-Graduações de Medicina Desportiva, o que me permitiu trabalhar com uma equipa de futebol profissional sénior, bem como de Climatologia e Hidrologia Médica (que me permite trabalhar em Termas), estando a alargar a minha diferenciação, de momento, em outras áreas, como a Reabilitação Cardíaca e Pediátrica.
O futebol é um meio tipicamente associado ao mundo masculino. No meu caso específico, quando trabalhei como médica de uma equipa de futebol profissional (que me trouxe grande realização profissional), os únicos elementos femininos para além de mim eram as ajudantes do roupeiro e de limpeza. Lembro-me de ter estado presente em dezenas de jogos e apenas me ter cruzado uma única vez com uma médica mulher (responsável pela equipa adversária). Apesar de inicialmente ter sentido ser recebida com uma certa curiosidade e dúvida sobre se me adaptaria, rapidamente ganhei a confiança da equipa e dos jogadores. Embora haja ainda um caminho a percorrer, sinto que cada vez mais as barreiras ficam esbatidas.
Outra área do meu interesse, motivada pela minha formação em Violino na Escola de Música do Conservatório Nacional, é a Musicoterapia, um recurso extremamente útil na recuperação de indivíduos numa multiplicidade de situações clínicas. Também os Músicos, frequentemente acometidos por patologias do foro da MFR pelos movimentos repetitivos que a execução da sua atividade profissional obriga, beneficiam em vários momentos ao longo da sua carreira dos nossos cuidados.