Era assim, nos longínquos anos 90 do século XX, que usávamos explicar a circunstância europeia, na época da euforia, ainda assim paradoxal, do final da guerra fria e da vitória aparentemente definitiva, da democracia, da economia de mercado, da paz garantida e para sempre. A Europa, metonímia usada para referir a União Europeia (“UE”), designação cunhada pelo Tratado de Maastricht, entrado em vigor em 1993, partilhava com o mundo ocidental, os seus aliados transatlânticos e mais alguns povos espalhados pelo mundo, um sistema de princípios e valores à laia de evangelho civilizador inelutável.
Não foi assim. A lógica da democracia liberal, o espaço alargado de comércio e livre circulação dos fatores da economia, as regras do direito internacional público herdadas do pós-2ª Guerra, dimensões na aparência definitivas de um concerto de Estados e nações estabilizado, depressa começaram a ser postos em causa e reduzidos a aspirações vãs.
A UE vivera a euforia dos 30 anos gloriosos, de 1945 a 73, de grande crescimento económico, terminado com o choque petrolífero de 1973; seguiu-se década e meia de estagnação e europessimismo a que, por facilidade, chamarei de período Thatcher; e reviveu depois, com o fim da guerra fria e por algum tempo, a esperança e a visão de um futuro glorioso. Parecia ser um gigante económico em crescimento – de seis a 15 Estados-membros no espaço de menos de 40 anos; uma parte significativa do comércio mundial começava e acabava no seu mercado comum, depois interno; os seus padrões, regulatórios, ambientais, sociais, de segurança, impunham-se a empresas e Estados do mundo inteiro, desejosos de aceder aos benefícios do espaço europeu; estabelecera uma cidadania europeia, um espaço único de liberdade, segurança e justiça e até uma moeda única.
No início do século XXI chegou mesmo a desejar – a projetar – fazer da sua economia a mais dinâmica e competitiva do mundo, baseada no conhecimento. Foi a (defunta) estratégia de Lisboa, expressão de um conceito novo chamado de softpower ou, se quisermos, capacidade de persuasão, de impor padrões e convencer outros a adotá-los. Uma Europa com poder, recorrendo ao termo inventado por Joseph Nye.
No corpo desmesurado do gigante económico habitava um anão político. Uma política externa comum fragmentada e pouco solidária, uma política de defesa incipiente e uma defesa comum inexistente, tornavam a Europa dependente dos seus aliados, aliás do aliado, os Estados Unidos, e da aliança por este alimentada, a NATO, para a proteger dos inimigos externos – antes, os países comunistas, em particular a URSS, nos anos 90 novas ameaças e riscos, mais ou menos difusos, de um mundo crescentemente multipolar, com potências, até nucleares, a florescer. E, aos poucos, o gigante económico começou a marcar passo. Todo o século XXI – os
últimos 25 anos -, foi marcado por crises diversas, cada qual com capacidade para, por si só, enfraquecer o gigante económico que a Europa fora. As torres gémeas e o terrorismo; as guerras da civilização (Huntington), novas e velhas; a crise económica, que começou pelo sub-prime e acabou por derrubar o equilíbrio e a estabilidade financeira da Europa, em geral, e de alguns países, como Portugal, em particular; a crise dos imigrantes e dos refugiados; o Brexit; o Covid; a invasão da Ucrânia; Gaza.
Crises sobre crises sobre crises. E apesar de a Europa ter procurado, de forma incessante, reinventar-se, incluindo tentando dotar-se de uma verdadeira Constituição – que teve como sucedâneo o Tratado de Lisboa -, a distância da Europa aos seus principais competidores, enquanto potência económica, não parou de aumentar.
O crescimento económico da UE entre 2019 e 2023 foi de 21% – o dos Estados Unidos foi de 34%. Em 2023, as exportações europeias para a China foram de 223,6 mil milhões de euros, mas as importações chegaram aos 515,9 mil milhões de euros. Em 2019, a percentagem da produção europeia no produto interno bruto global baseado em paridade de poder de compra foi de 15,27% – a projeção para 2029 estima cerca de 13,19%. Os países atualmente membros da UE chegaram a representar, por volta dos anos 60 mais de um terço do PIB mundial: em 2100, esse valor deverá baixar dos dois dígitos. O gigante económico, continuando a ser um anão político, encolhe sem cessar. São muitas as razões, como o desinvestimento na inovação, ou a sua pouca
eficácia. E uma competitividade diminuída é simultaneamente causa e efeito desse desinvestimento. Alterações geoestratégicas, económicas e sociais, reforçam a tendência.
Que futuro se poderá então perspetivar para a Europa? Pergunta crucial, de resposta quase impossível. Depende das escolhas feitas no plano europeu; da ambição que os líderes políticos e as populações europeias quiserem, e
lograrem ter; da capacidade de adotar um investimento massivo do tipo do plano Marshall, a que alude Mario Draghi, no seu relatório de 400 páginas. Escreve o antigo presidente do Banco Central Europeu, feito guru do futuro da Europa: Sem um investimento anual três vezes maior do que o atual, a agonia europeia face aos
seus rivais, lenta e inevitável, continuará. Importa investir numa estratégia industrial transformadora (rumo à autonomia estratégica). Mais integração económica, maior inovação tecnológica, mais capacidades e formação. Criar finalmente a união de mercado de capitais, à altura do mercado interno para produtos e serviços (Maria Luísa Albuquerque com uma palavra a dizer?).
E o que falta para o fazer, para que a Europa consiga mobilizar os recursos necessários e fazer assentar o seu futuro numa base de solidariedade efetiva, recorrendo aos mercados e usando aquilo que ainda lhe resta de músculo económico, financeiro, político – de softpower? A resposta parece simples: falta-lhe – talvez falte – vontade política.
Nessa vontade, ou na falta dela, está a resposta à pergunta impossível feita atrás. E a consequente resposta impossível começa a ser dada no futuro próximo – no ciclo político e económico que se iniciará com a entrada em funções da nova Comissão Von der Leyen.
Europa: e porque não um gigante político e económico? Esse seria o futuro desejável. Têm a palavra os europeus.