“A Justiça nacional nunca esteve tão bem”

Carlos Melo Bento, advogado com mais de 60 anos de prática de Advocacia, não partilha da opinião de que a Justiça em Portugal está mal e desprovida de capacidade de trabalho. Pelo contrário, este causídico acredita que a Justiça nunca esteve tão bem. Quanto à reforma do setor, que foi alvo recente de um Manifesto assinado por várias dezenas de personalidades portuguesas, Carlos Melo Bento não acredita que as reformas se façam por “encomenda”.

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Em termos gerais, que análise faz da Justiça em Portugal?

A nossa Justiça nunca esteve tão bem. Em democracia ela tem sido objeto de críticas a propósito de processos, ditos mediáticos, que supostamente levam demasiado tempo. Mas todos os sistemas judiciários têm processos demorados e isso não afeta os outros milhares que são julgados, e bem, nos prazos legais. As greves dos funcionários atrasam alguns processos, alguns dias por ano, pouco afetam o ritmo geral. Trabalhei na Inglaterra e nos Estados Unidos e não vi mais rápido. Greves denunciam baixos salários e trabalhos a mais e nisso os grevistas têm razão. A nossa Justiça, em geral, é excelente. Só não consegue ser melhor e mais rápida porque o
legislador processual é complicativo, e pouco prático, desconfiado e manipulador dos julgadores na formulação dos seus juízos.

Quais os aspetos que lhe parecem de urgente resolução, de forma a alterar a perceção da Justiça atualmente existente?

Libertar o julgador das excessivas e inúteis fundamentações escritas sem qualquer influência no seu prudente
arbítrio. Aquele tem de julgar os factos (provados ou não provados) e aplicar as normas adequadas aos apurados. É assim no crime e no cível. Os quilómetros de folhas escritas pelos nossos magistrados (e que quase
nunca são lidos ou ouvidos…), são uma das causas principais de muitas das inúteis demoras processuais.

Partilha da opinião de alguns colegas de que os advogados que trabalham isoladamente têm mais dificuldade em ter acesso a informações, formações e atualizações de âmbito legislativo, que lhes permitam melhorar o seu trabalho?

Não concordo. A internet é um instrumento de busca que supera facilmente as dificuldades em encontrar a doutrina dos mestres e as melhores decisões dos tribunais superiores. A boa preparação jurídica depende menos do número dos pesquisadores do que da qualidade destes.

Quais as maiores dificuldades que elenca no que respeita ao exercício diário do seu trabalho?

60 anos de Advocacia ensinaram-me que a maior dificuldade nasce da constante alteração legislativa, tanta vez “inspirada” excessivamente nas fontes europeias nem sempre conformes com a nossa tradicional, excelente e
secular produção. Depois, reduziram as férias judiciais, o que nos impede de as usar para pôr o trabalho
processual em dia, o estudo descansado dos casos mais difíceis, e o descanso mental imprescindível, numa atividade atormentada pelo pesadelo dos prazos, que diferem de caso para caso e, no que diz respeito aos recursos, foram reduzidos para nós, advogados, sem qualquer justificação lógica.

Como vê a reforma da Justiça que há tantos anos vem sendo falada, mas que nunca chegou, até ao momento, a ser efetivada? Acredita que o Ministério Público – no caso específico da sua procuradora-geral – necessita de uma alteração, de forma a voltar a credibilizar este agente da Justiça?

As reformas não se devem fazer por encomenda. Depois da “limpeza” democratizante posterior a Abril de 74, os aperfeiçoamentos deveriam ser produto dos estudos que a prática jurisprudencial vai provocando e os mestres
estudando, como lhes compete. O Ministério Público é dos mais prestigiados do mundo ocidental. Exceções não fazem a regra.

No caso do “Manifesto por uma reforma da Justiça em defesa do Estado de Direito Democrático”, o que pensa deste documento? Vem num bom momento, para que seja um impulso a uma reforma da área da Justiça?

Não o li mas, guiando-me por uma síntese daquele que diz o seguinte: “O manifesto dá prioridade à separação dos dois poderes e apela a uma “atitude pró-ativa” do poder político “na definição e execução da política de justiça”…” Sem prejuízo da sua autonomia, exige-se a recondução do Ministério Público ao funcionamento hierárquico e o fim do exercício por parte dos seus magistrados de “um poder sem controlo” interno ou externo. Os 50 subscritores pedem “escrutínio externo” e “avaliação democrática independente” do sistema judicial.”.
Por mim, penso que o funcionamento hierárquico é o adequado, desde o momento em que o Procurador-Geral não dependa do poder político e a sua designação compreenda forte suporte democrático com maioria agravada dos representantes dos eleitores, com intervenção do Conselho de Estado e direito de veto presidencial.