“As advogadas contribuíram para um maior número de acordos em Tribunal”

Sílvia Biscaia é advogada há cerca de 30 anos e assume que nunca se sentiu discriminada na sua carreira. No entanto, crê que isso se deve às pessoas com quem se cruzou ao longo da sua vida profissional. As mulheres estão cada vez mais presentes na área do Direito, o que levou, na opinião desta causídica, a maiores consensos e à realização de um maior número de acordos. Sílvia Biscaia deixa ainda a nota relativa à necessidade de a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores se atualizar, com vista à maior proteção dos seus beneficiários, sob pena de se tornar obsoleta.

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Como avalia a evolução que a profissão teve no que respeita à existência de mulheres na Advocacia? Que mudanças aconteceram?

Quando frequentei o curso de Direito, na década de noventa, já se encontrava um grande número de mulheres a frequentá-lo. Possivelmente seríamos já, por essa altura, mais mulheres do que homens. Quando iniciei a minha atividade como Advogada, há cerca de 30 anos, a maioria dos advogados mais velhos eram homens e, da mesma forma, os tribunais eram ainda maioritariamente constituídos por homens. Ainda sentíamos que os homens dominavam as profissões forenses. Nos 20 anos que se seguiram verificou-se uma tendência crescente de menos homens e mais mulheres inscritas no curso de Direito e, em consequência, também os Tribunais foram mudando, passando a ver-se cada vez mais mulheres como Advogadas, Magistradas do Ministério Público e Juízas.

Que impacto teve na profissão o facto de existirem, atualmente, mais mulheres do que homens a advogar? Ajudou a esbater eventuais preconceitos ainda existentes?

Na realidade, como foi um processo natural, que foi acontecendo ao longo de muitos anos, o impacto na profissão não foi imediato e os preconceitos foram sendo esbatidos. Sinto que hoje em dia se consegue fazer um maior número de acordos em detrimento das soluções que obriguem à litigância devido ao facto de existirem mulheres em todos os intervenientes processuais. Seguramente se existissem mais mulheres líderes dos seus países existiriam menos conflitos bélicos e mais soluções de consenso, pois são naturalmente mais conciliadoras.

Enquanto mulher, teve algum momento no exercício da sua profissão em que se sentisse, de alguma forma, alvo de discriminação pelo seu género?

Pessoalmente nunca senti, mas acho que tive muita sorte na minha vida profissional com as pessoas com quem me cruzei. Comecei a trabalhar com o Dr. João Nabais ainda no estágio, estive na sua sociedade de advogados durante 20 anos e grande parte destes como sócia. O Dr. João Nabais sempre foi um homem à frente do seu tempo e contra qualquer tipo de discriminação. Na realidade, durante o maior período da vida da sociedade teve duas mulheres como sócias, eu própria sediada em Faro e outra colega do Porto.

As mulheres são, hoje, independentes e profissionais muito qualificadas. No entanto, ainda assistimos com frequência a situações em que o colega homem, na mesma função e com experiência profissional semelhante, ganha mais do que a mulher. O último estudo demonstra que, no geral, o homem ganha mais 16% do que a mulher. Que motivos ainda levam a que isto aconteça?

Essa situação ainda acontece porque os homens ainda são maioritários nas posições de Chefia e tendem a promover mais facilmente outros homens, pois ainda existe a ideia que a mulher naturalmente terá constrangimentos de tempo e disponibilidade devido à maternidade. Por outro lado, talvez confiem mais nos
homens do que nas mulheres por partilharem os mesmos interesses do universo masculino.
Nos últimos 10 anos desempenhei funções de CEO no Grupo Dunas Portugal, composto por cinco sociedades portuguesas detidas por um grupo norueguês e nestas empresas, curiosamente, ou talvez não, as funções de liderança foram assumidas por mais mulheres do que homens, devido às suas qualificações e fomos sempre paritários em termos de rendimento. No entanto, a Noruega é uma sociedade muito avançada no que respeita a todas as questões relacionadas com ESG e especialmente no que respeita a questões de igualdade de género e igualdades nas condições de trabalho e, como tal, foi um processo normal onde as contratações nunca tiveram em consideração o género, mas sim qualificações e aptidões.

“A Ordem dos Advogados
e a CPAS
têm de iniciar
um caminho
urgente
na regulamentação
dos direitos
profissionais dos
advogados”.

Parece-lhe viável que a situação descrita acima se altere brevemente? Ou falamos de uma situação em que a própria sociedade teria de se modificar, a nível de valores, para permitir a equidade entre homens e mulheres?

A situação vai alterar-se seguramente conforme a liderança de topo for sendo assumida maioritariamente por mulheres. Aí, seguramente, existirá paridade, pois assumirão os cargos de chefia as pessoas mais competentes,
independentemente do género. Nessa altura, chegarão ao topo mulheres de gerações mais novas que ou já foram educadas de forma igualitária pelos seus pais, ou pelo menos, assim acredito, terão educado filhos e filhas de forma igual.

A mulher advogada não conta ainda com subsídio de maternidade como as restantes mulheres cujos descontos vão para a Segurança Social. Porque é que tal facto ainda acontece e que impacto isso tem na vida das profissionais desta área que querem ser mães?

Tem um impacto muito significativo, pois as mulheres veem-se obrigadas a adiar a decisão de serem mães.
Caso estejam a trabalhar na Advocacia em prática individual, se não trabalharem não conseguem cumprir
as obrigações nem ter rendimento; se estiverem inseridas em Sociedades de Advogados terão o receio de a sua ascensão na carreira ser interrompida. A CPAS tem ainda um longo caminho a percorrer nesta matéria, sobretudo porque podemos estar perante uma situação de desigualdade para as condições de trabalho no que respeita ao género.

Como avalia a importância de um maior equilíbrio na relação parental de forma a permitir à mulher prosseguir com a sua carreira após o nascimento do bebé? A nova legislação já prevê um maior prazo de licença de paternidade, mas tal está a ter efeitos práticos?

Parece-me óbvio que deve ser dado a ambos os progenitores a decisão sobre como pretendem desfrutar da licença de maternidade/paternidade, que deve ser um período único cujo critério de divisão deve ficar na disponibilidade das partes. Na prática verifico que as mães ficam bastante mais tempo em licença do que os pais. É evidente que nos primeiros tempos, devido à amamentação, a mulher necessitará de mais disponibilidade, mas deve ser uma decisão do casal.

Na celebração do Dia Nacional do Advogado, o que lhe parece que vale a pena destacar, no que respeita ao que é necessário alterar na profissão / direitos e liberdades dos seus profissionais?

Sendo os juristas profissionais que lidam diariamente com a defesa de direitos, liberdades e garantias é irónico que sejam os advogados os profissionais menos protegidos nestas matérias. A Ordem dos Advogados e a CPAS têm de iniciar um caminho urgente na regulamentação dos direitos profissionais dos advogados de forma equitativa com a restante sociedade. Se essa via não for seguida estas instituições provavelmente estarão a colocar em causa a sua própria existência.