Clínica Razão D’Ser: viver o parto como um momento de prazer e ligação entre mãe e filho

Sónia Rocha é enfermeira especialista em saúde materna e obstétrica, o que significa que é a profissional habilitada a assistir partos e a acompanhar a pessoa grávida e famílias em todo o processo de gestação, parto e pós-parto. Acredita que o nascimento deve ser preferencialmente um processo natural, fisiológico e menos medicalizado, pelo que criou a Clínica Razão D’Ser, onde a pessoa está no centro de todo o processo e o parto é visto como um evento familiar que ocasionalmente necessita de cuidados médicos e não um evento médico que ocasionalmente poder ser um evento familiar.

0
716

O seu caminho enquanto mulher e profissional está cheio de conquistas, mas também de muito trabalho e dedicação. Como se descreve, antes de mais, enquanto pessoa, e depois enquanto profissional?

Desde criança que me descrevem como alguém que sabe bem o que quer e o que não quer, com determinação e que luta pelos seus objetivos e por aquilo em que acredita. Revelava muito interesse por aprender e aprendia bem rápido, com quatro anos já sabia ler, escrever e realizar cálculos e aos cinco iniciei o ensino primário, mesmo sem
uma matrícula oficial. Era bem introvertida e muito curiosa, pelo que devorava todos os livros com que me cruzava. Lembro-me de existir uma biblioteca itinerante da Gulbenkian, além de me fazer sócia, fiz sócias as minhas irmãs para poder requisitar mais livros, pelo que todos os meses iam comigo para casa mais de 15 livros, que a gestora da biblioteca insistia que eram muito avançados para a minha idade e não acreditava que eu os conseguisse ler, mas que eu verdadeiramente lia. Todos os assuntos me interessavam, mas o que mais me atraía eram assuntos relacionados com o corpo humano, saúde e processos reprodutivos pelo que com o primeiro dinheiro que consegui juntar, encomendei uma enciclopédia de saúde e os primeiros assuntos que pesquisei foram relacionados com o
processo reprodutivo. Durante todo este percurso, pessoal e profissional, a leitura manteve-se um hábito bem presente, contribuindo positivamente para o meu desenvolvimento enquanto pessoa e profissional. Sou uma pessoa otimista, positiva e que adora amar, viver e aprender, a melhor frase que me descreve é sou o resultado dos livros que leio, das experiências que vivo e das pessoas que amo.

Logo depois de ter terminado a especialidade, no seu percurso académico, percebeu que a realidade dos partos praticados não era aquela que desejava. Como foi este processo de pesquisa e conhecimento?

Enquanto aguardava a abertura do curso de especialização, para poder aceder à profissão de “parteira”[1], vivi o processo de maternidade por duas vezes com o nascimento dos meus dois primeiros filhos em 2000 e 2003. Nessa altura, não se falava de parto em casa e a medicalização do parto já estava bem presente nos nossos hospitais. Sempre desejei viver intensamente as experiências de parto e da forma mais natural possível, apesar disso os meus partos foram induzidos, sem uma verdadeira razão clínica. Ambos terminaram em partos vaginais “normais”,
e para mim foram, naquela altura, as melhores experiências da minha vida, mas com a plena consciência que um parto deveria ser muito diferente daquilo que vivi.
Quando ingressei na especialização já tinha a experiência de trabalhar como enfermeira num serviço de obstetrícia, refletido muito sobre as minhas experiências de parto e também lido imenso, pelo que não concordava com uma abordagem tão medicalizada do nascimento e defendia o respeito pela fisiologia do nascimento e pela autonomia da mulher.
Na especialização tivemos um pequeno contacto com as vantagens de um parto vaginal fisiológico, mas na verdade em sala técnica ensinavam-nos a assistir um parto com a mulher na posição de deitada e coberta com panos esterilizados. Fui, também, ensinada a fazer ativamente a extração do bebé e a fazer episiotomias (corte na vagina e períneo). Questionei várias vezes onde ficava o respeito pela fisiologia e pela autonomia da mulher, mas eram perguntas que ficavam sem resposta ou a resposta que surgia era que essa era a realidade atual nos hospitais e, portanto, teríamos que proceder dessa forma.
Ainda durante a especialização fui, em 2006, a um congresso que reuniu a maioria dos especialistas em parto fisiológico e cuidados humanizados do mundo, e pela primeira vez ouvi todos sem exceção a defender o que eu acreditava. O contacto com profissionais como Michel Odent, Naolí Vínaver, Ricard Herbert Jones, entre outros, trouxe-me a certeza que precisava para iniciar um caminho diferente na área dos cuidados de saúde obstétricos em Portugal.
Pouco depois de terminar a especialização realizei formação em modelo de continuidade de cuidados por parteira, parto natural e parto em casa com a parteira italiana Verena Schmid, diretora da Scuola Elementale di Arte Ostetrica (SEAO), o que me impulsionou a iniciar o meu percurso profissional nesta área. Muitas mais formações, com obstetras e parteiras internacionais foram surgindo neste percurso, sendo que a parteira que mais tem contribuído para a minha formação e percurso profissional, além de Verena Schmid, tem sido Anna Maria Rosseti, atual diretora da SEAO.

1] A profissão de parteira em portugal é representada pelo enfermeira(o) especialista em saúde materna e obstétrica, noutros países o acesso à profissão pode ser idêntico a portugal ou diretamente por um curso superior na área.

Magicfotografia.pt

O que a levou a apostar no modelo Midwifery Continuity of Care Model? Que vantagens isso traz às mulheres ao longo do processo de gravidez e durante o parto?

Este modelo coloca a pessoa no centro dos cuidados, o protagonismo é dela e não do profissional de saúde. A pessoa é autónoma e respeitada nas suas decisões, independentemente da opção que o profissional de saúde considera mais adequada. Em saúde, na grande maioria das vezes, as situações não são pretas ou brancas. Ao profissional de saúde cabe explicar, se a mulher quiser ouvir a explicação, à luz da melhor evidência científica disponível, os cuidados de saúde mais adequados, à pessoa cabe decidir o que ela considera melhor para si. Para
além da pessoa ser o centro da nossa atenção, a filosofia assistencial é baseada no modelo salutogénico e no modelo psico-neuro-endócrino-imunológico. No primeiro, é considerado que o processo reprodutivo é um processo protegido pela natureza, com um objetivo de sucesso e não de insucesso, portanto, apesar da atenção aos desvios da normalidade não poder ser descurada, os sinais de saúde são avaliados e valorizados e o risco é ponderado em função desta avaliação. A avaliação da saúde da pessoa à luz do segundo modelo permite-nos perceber a capacidade de coping e resiliência da pessoa às adversidades, quais são as suas forças e as suas fraquezas, assim como nos permite trabalhar o empoderamento. A evidência científica demonstra que este modelo contribui para maior número de partos normais, com menor intervenção e maior satisfação com os cuidados recebidos, sem aumento de desfechos adversos.

É possível que o momento do parto seja um momento prazeroso para a mulher?

Sim, é possível. Eu pari quatro vezes e todas as experiências foram prazerosas com sensações inexplicáveis, especialmente nos dois últimos partos, naturais e domiciliários. Fisiologicamente, no parto estão envolvidos os mesmos órgãos e hormonas que num evento sexual. Quando falamos de eventos sexuais, sabemos que tanto
podem ser altamente traumáticos, a nível físico e emocional, como multi-orgásmicos, tudo depende como a pessoa se posiciona face ao evento, se o deseja ou não, o ambiente onde se encontra, se promove a líbido ou a inibe, e
como a pessoa é tratada pelo parceiro(a), qual o nível de entendimento entre ambos ao nível emocional e linguagem não verbal. Assim que as mulheres percebem esta estreita relação, começam a visualizar o parto com menos medo e mais desejo de o viver.


Como se deu o seu encontro com os partos na água? Que vantagens isso traz para a mulher e o recém-nascido?

A primeira vez que visualizei num documentário um parto na água, confesso que não me senti segura e pensei que era algo não fisiológico. Michel Odent, foi o obstetra que introduziu uma banheira num serviço obstétrico em
França e um autor de um dos primeiros artigos científicos sobre uso da água no trabalho de parto, após o ouvir no congresso em 2006 e leitura das suas obras, rapidamente a minha visão se alterou. Em 2009, quando iniciei as primeiras assistências a parto no domicílio, rapidamente surgiram as primeiras solicitações para uso de imersão em água durante o trabalho de parto e os primeiros partos na água. Realizei formação específica nesta área, com Cornelia Enning e Bárbara Harper, parteiras, autoras e palestrantes internacionais. Profissionalmente, considero que as mulheres terem acesso ao uso da água durante o trabalho de parto, em especial à imersão é, sem dúvida uma mais-valia. A imersão em água contribui para um relaxamento imediato, permitindo a muitas mulheres ter um
parto fisiológico sem qualquer tipo de intervenção ou analgesia.

Muitas mulheres afiançam que o momento do parto lhes deixou memórias más. Como é que a Razão D’Ser prepara a mulher (e a família) para o parto? Que cuidados tem com a grávida que a ajudam a passar por este procedimento de forma tranquila e natural?

Sim, infelizmente, na melhor das hipóteses ouvimos algumas mulheres dizer que o parto “correu bem”, dado que quer ela, quer o bebé, estão vivos, mas os olhos não brilham quando falam das suas experiências de parto e nem
desejam repeti-las tão cedo. Na Razão d’Ser, colocamos sempre a autonomia da pessoa em primeiro lugar. Adoramos e promovemos a fisiologia natural do nascimento, mas respeitamos qualquer opção. Apesar de maioritariamente nos procurarem para assistência a parto fisiológico e parto no domicílio, temos clientes que já chegam com a decisão tomada que irão realizar, por sua opção, uma cesariana programada. Nestes casos, questionamos à pessoa se é uma decisão final ou se pretende ouvir outra opinião, se se trata de uma decisão final, trabalhamos com ela noutras áreas, como os cuidados ao bebé, amamentação, cuidados pós-cirúrgicos, etc. Nas pessoas grávidas que desejam um parto natural, mas em ambiente hospitalar, partilhamos informação sobre como funcionam as instituições que conhecemos, para que possam escolher a que melhor se adapta aos seus desejos e trabalhamos o empoderamento para que sintam que conseguem parir independentemente do ambiente em que se encontram.

O que a levou a avançar para uma clínica onde o seu trabalho se destaca pelo foco que apresenta na saúde da mulher, do processo de maternidade e da família?

O salto de prestadora de serviços independente para empreendedora foi motivado pela energia gerada nos meus últimos dois partos. O parto é um portal, pode ser altamente traumático ou extremamente empoderador. Ter vivido os partos que sempre sonhei contribuiu para ultrapassar os receios de fazer um investimento financeiro que
podia ter implicações na minha vida pessoal e familiar, caso não se tornasse viável. Por outro lado, considero-me uma ativista pelos direitos na gravidez e no parto, e a forma como se nasce em Portugal fica distante do desejável,
com manifestamente, uma elevada insatisfação pelos cuidados recebidos, relacionada com retirada de autonomia e práticas não baseadas em evidência, pelo que senti necessidade de contribuir para um maior empoderamento e
melhores nascimentos.

Magicfotografia.pt

Na Clínica Razão D’Ser são vários os serviços que prestam, adequados à família, direcionados para os seus diferentes elementos. Quais as áreas que considera fundamentais, hoje, de forma a assegurar a saúde da mulher ao longo de todos os seus processos fisiológicos e biológicos?

Algumas das nossas clientes são apenas acompanhadas por mim ao longo de todo o processo, para outras é importante um equipa multidisciplinar que partilhe a mesma visão integrativa para que consigamos o melhor resultado possível. A inclusão de terapias como medicina tradicional chinesa, osteopatia, f isioterapia pélvica, hipnoterapia, aromaterapia, entre outras é hoje em dia, uma mais-valia, numa perspectiva integrativa de saúde.

A Clínica Razão D’Ser tem espaço para crescer?

Sim, pelo que queremos apostar na formação profissional e na sensibilização da sociedade em geral para aquilo que deve ser um nascimento saudável. Ninguém fala com as crianças sobre o nascimento e muito menos de uma forma positiva, para que no futuro sejam adultos com menos medo do parto e mais anseio por viver essa experiência. Em breve, será publicado o primeiro de 3 livros infantis sobre nascimento. Este primeiro livro “A menina Natal”, é baseado na história real do nascimento da minha terceira filha, nascida no dia 25 de dezembro de 2016. A história foi escrita por mim e está a ser ilustrada pela própria menina Natal e pela irmã mais velha e tem como objetivo ajudar pais e educadores a conversar com as crianças sobre o nascimento de uma forma real e positiva.