Está no nosso ADN – ciência tropical e liberdade

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No dia 25 de abril celebra-se o Dia do ADN, mas também o Dia Mundial da Luta Contra a Malária (ou Paludismo), e, para Portugal de grande importância, o Dia da Liberdade. No dia anterior comemora-se a criação do Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Será esta coincidência, feliz, que irei explorar.

“Está no nosso ADN” é uma expressão agora comum que trouxe esta molécula para a linguagem habitual, sendo aplicada, um pouco indiscriminadamente, de a equipas de futebol a empresas. Diz o dicionário Priberam da Língua Portuguesa querer dizer “Traço distintivo ou qualidade essencial que caracteriza alguém ou alguma coisa”. Este sentido determinístico é algo redutor para esta molécula fascinante e que tem revolucionado a ciência em vários aspetos, assim como as nossas abordagens na saúde.

Há 71 anos, no dia 25 de abril, Watson e Crick publicavam o artigo onde descreviam a estrutura em dupla hélice do ácido desoxirribonucleico (ADN). Vinte anos depois, Mullis inventava uma forma de facilmente gerar enormes quantidades de pedaços pequenos desta molécula no laboratório: a técnica da reação em cadeia da polimerase (ou PCR), que é a base de trabalho de muitos laboratórios nas áreas da biologia e da saúde e que foi popularizada fora dos laboratórios com a recente pandemia de COVID-19. Contudo a história desta molécula na ciência começou mais de 100 anos antes com um jovem bioquímico suíço, Miescher, em 1869, ano em que Mendeleev apresentou a tabela periódica pela primeira vez, e 10 anos depois da publicação do livro “A Origem das Espécies” por Darwin.

Cinquenta anos depois, em 2003, no mesmo mês de abril, completou-se a primeira versão da sequência do genoma humano. Durante este projeto, que durou mais de 10 anos, desenvolveram-se metodologias de sequenciação mais rápidas, mais eficazes, e com capacidade de gerar mais dados. Desde então, o número de genomas sequenciados tem aumentado exponencialmente, com uma cobertura cada vez maior da diversidade genética humana, mas também de todos os organismos vivos, desde os vírus mais simples aos maiores genomas. A genómica tem tido uma importância cada vez maior na ciência e na medicina, estando popularizada nos agora vulgares testes de ancestralidade. Neste momento temos disponíveis metodologias capazes de sequenciar cadeias de ADN diretamente, sem amplificação prévia, e temos sequenciadores pouco maiores que um telemóvel e que podem ser transportados para regiões remotas, onde há dificuldade em implementar tecnologias mais avançadas, mas onde muitas vezes emergem novos organismos causadores de doença.

A molécula de ADN terá surgido muito cedo após a formação do planeta Terra, sendo o principal repositório da informação necessária para a construção e para o funcionamento dos organismos vivos. É constituído por duas longas moléculas que formam uma cadeia dupla, em que cada cadeia é complementar à outra. Assim, cada uma destas cadeias pode servir de molde para a síntese da outra. Normalmente esta replicação ocorre de forma fiável. Contudo, nem sempre é assim, pois de vez em quando há erros. Estes enganos são corrigidos, mas pode acontecer que sejam corrigidos para uma versão diferente da original, criando, assim, as chamadas mutações. Estas várias mutações também se podem misturar, ou seja, recombinar, como um jogo de Lego. Ao longo dos vários milhares de milhões de anos de história de vida na Terra, esta molécula, com os seus erros de cópia e a sua capacidade para se recombinar, tem produzido a maravilhosa diversidade de organismos que podemos observar, de pequenos vírus a árvores enormes, incluindo a espécie que conseguiu desvendar muitos dos seus segredos, Homo sapiens.

Através do estudo destas mutações e das novas combinações, temos desvendado as relações entre as várias espécies e grupos de organismos ao longo da sua evolução, incluindo a história da espécie humana. O ADN presente nas nossas células veio mostrar-nos que a espécie humana atual é um grupo relativamente homogéneo a nível genético, apesar das diferenças de aspeto que tanto valorizamos para definir quem pertence ou não ao “nosso” grupo. O nosso ADN também permitiu descobrir fósseis genéticos, ou seja, formas de genes de espécies próximas da nossa (Homo sapiens) no genoma de humanos atuais. Encontrou-se marcas genéticas de Homo neanderthalensis (o Homem de Neanderthal), mas também de espécies desconhecidas, como os Denisovans na Ásia. Genes destas espécies parecem permitir por exemplo aos tibetanos uma maior tolerância à altitude, mas outros poderão aumentar o risco de doença grave em COVID-19, apesar de poderem conferir benefícios noutros contextos. Os estudos de ADN mostram-nos que populações saudáveis apresentam diversidade genética, incluindo na espécie humana. Essa diversidade permite evitar doenças genéticas causadas pela presença de duas cópias “defeituosas” de certos genes. Essa diversidade também permite aumentar as combinações de genes envolvidos na defesa contra doenças. A ciência atual tem mostrado, assim, o perigo de teorias eugénicas de suposta “pureza” genética. Populações geneticamente puras estão em maior risco de desaparecer por dificuldades na adaptação a ambientes sempre em mudança, incluindo novas doenças infeciosas, que muitas vezes surgem através das tais mutações, mas principalmente da recombinação entre organismos diferentes.

Alguns organismos, desta grande diversidade, adaptaram-se a viver em associação com outros organismos e um número significativo tornou-se parasítico. Sendo uma forma de vida muitas vezes olhada com desprezo, a complexa relação entre os organismos parasitas e os seus hospedeiros, que tem sido desenvolvida ao longo de milhares ou mesmo milhões de anos, é fascinante e reflete-se ao nível do seu e do nosso ADN. Os parasitas descartaram componentes que não necessitavam para completar o seu ciclo de vida, acabando por simplificar o seu genoma e a sua maquinaria celular. Apesar disso, os parasitas têm genomas complexos, com características muito próprias, e que têm apresentado desafios a quem pretende desvendar os seus segredos para melhor os combater.

A malária é causada por espécies do género Plasmodium, um destes grupos de parasitas. As vacinas contra a malária têm tido relativamente baixa eficácia, não havendo ainda vacinas contra outras doenças parasitárias para aplicação a humanos, e estão disponíveis poucos fármacos. No caso da malária, o parasita tem criado rapidamente resistência aos fármacos existentes. Esta situação é ainda mais preocupante relativamente às chamadas doenças tropicais negligenciadas, muitas das quais são causadas por parasitas, e que são principalmente doenças de populações negligenciadas. Estas doenças, apesar de não levarem à mortalidade elevada associada à malária, podem levar a consequências graves como a cegueira ou atrasos no desenvolvimento físico e intelectual das crianças destas populações, normalmente em países de baixa ou média renda.

O combate a estas doenças tropicais, incluindo em África, requer investimento em diagnóstico e tratamento, para além da melhoria das condições de vida em geral. Os programas de controlo de doenças tropicais negligenciadas ainda se baseiam em testes de diagnóstico serológico e em fármacos fornecidos, seja a baixo custo ou doados, por países terceiros. Apesar da grande maioria dos países de expressão portuguesa ter assistido a investimento em capacitação na área da deteção de ADN, e em biologia molecular em geral, principalmente a nível de equipamentos e pessoal, estas tecnologias ainda estão restritas a poucos centros ou universidades, e os reagentes continuam a ter de ser adquiridos a países terceiros, a custo elevado. Uma verdadeira descolonização das metodologias que usam ADN deverá incluir capacitação local na produção de reagentes e outros materiais essenciais para aplicação das técnicas moleculares de deteção e manipulação de ADN, para além da formação avançada. As várias colaborações entre universidades e institutos de investigação de PALOP e Portugal, têm permitido a formação de quadros, mas que muitas vezes ainda acabam por ser integrados em cargos administrativos com pouco tempo para se dedicarem a investigação laboratorial ou mesmo a formação de técnicos e estudantes. No IHMT continuamos com a nossa missão de capacitar as populações onde ocorrem estas doenças, através da formação avançada e projetos colaborativos para implementar as metodologias localmente.

A investigação científica, para além de dever ser descolonizada, e tal como a sociedade em geral, precisa de liberdade. A investigação direcionada a aplicações práticas, como foi o desenvolvimento de métodos de sequenciação e de amplificação de ADN, trouxe importantes desenvolvimentos, sem dúvida. Contudo, a grande maioria destas revoluções científicas apoiam-se em investigação fundamental, como o foi a identificação da própria molécula de ADN, a descoberta da sua estrutura, o estudo das enzimas que permitem a sua manipulação. Um exemplo é a investigação sobre uma molécula relacionada, o ARN, que levou ao rápido desenvolvimento de vacinas eficazes contra a COVID-19. A investigação fundamental é feita por cientistas com liberdade para investigar, sem espartilhos ditados por exigências de mercado ou diretivas políticas, como foi no concurso de projetos deste ano da FCT. Mas também deve ser feita sem os espartilhos de aplicações imediatas ou um grande número de citações em pouco tempo.

A liberdade está no ADN da ciência.

As opiniões deste artigo são da exclusiva responsabilidade da autora

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