“O conflito entre propriedade privada e direito à habitação só existe quando o Estado falha”

Marlise Guerreiro é advogada de Direito Imobiliário e explica, nesta entrevista, a forma como os projetos de lei aprovados recentemente na generalidade – relativos à ocupação de casas, nomeadamente em situação de posse ilegítima ou invasão – poderão vir a influenciar a legislação atualmente em vigor, o que tais propostas contemplam e quais os cenários que deveriam guiar o país na resolução deste problema ligado à habitação.

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Os partidos PS, IL e Chega apresentaram recentemente um Projeto de Lei relativamente à questão dos “ocupas” – pessoas que estão a ocupar casas e que alegam poder fazê-lo porque não têm uma habitação. Como se enquadra esta situação juridicamente?

Do ponto de vista jurídico, a ocupação de um imóvel sem consentimento do proprietário constitui uma violação do direito de propriedade, que é expressamente protegido pela Constituição e pelo Código Civil. A carência habitacional não confere legitimidade legal para invadir ou permanecer num imóvel alheio. O ordenamento jurídico português não reconhece qualquer direito à ocupação de imóveis privados com base em necessidades habitacionais. Pelo contrário, este tipo de conduta configura um ilícito e pode dar origem à responsabilidade criminal, nomeadamente pelos crimes de introdução em lugar vedado ao público ou usurpação, consoante as circunstâncias do caso.

A proposta de expulsão dos ocupantes no prazo de 48 horas é juridicamente equilibrada?

A intenção de agilizar a restituição da posse é legítima, mas o modelo proposto levanta dúvidas quanto à sua compatibilidade com os princípios do Estado de Direito. O mais adequado seria criar um procedimento especial
e expedito, com prazos curtos, decisão judi￾cial sumária e garantias mínimas, tal como já acontece em países como Espanha, França e Itália, onde se assegura simultaneamente a celeridade e a legalidade.

Como equilibrar o direito à propriedade privada com o direito à habitação?

O equilíbrio exige visão estrutural. A propriedade privada é um pilar do nosso sistema jurídico e, sem segurança jurídica nesse direito, não há confiança nem investimento no setor. Simultaneamente, o direito à habitação deve ser promovido com políticas públicas eficazes — planeamento urbano estratégico, incentivo à reabilitação e ocupação de
imóveis devolutos, parcerias público-privadas, entre outros. O conflito entre os dois direitos só existe quando o Estado falha em garantir o acesso à habitação por meios legais e sustentáveis.

Quais os maiores problemas atuais no mercado imobiliário e o que leva à crise habitacional?

A morosidade dos licenciamentos, a pressão fiscal, a insegurança jurídica e a ausência de políticas habitacionais eficazes contribuem para a escassez de imóveis acessíveis, bem como a legislação desatualizada em áreas como sucessões e arrendamento. Por isso, a IMOLAWYERS criou o PRL – Programa Legal de Reabilitação, um programa em que prestamos assessoria legal e estratégica a proprietários ou herdeiros na regularização e rentabilização do seu imóvel.

Há necessidade de uma nova legislação para enfrentar estes desafios?

Sem dúvida. O contexto atual exige uma reforma legislativa abrangente, que simplifique processos, estimule o investimento na reabilitação urbana, resolva os entraves sucessórios e promova a colocação de imóveis devolutos no mercado. Também é fundamental repensar o Código do Arrendamento para garantir equilíbrio entre senhorios e arrendatários.