“Sem uma liderança forte, a desagregação da UE é uma possibilidade”

João Cotrim de Figueiredo candidatou-se às eleições europeias e viu ser-lhe atribuído um mandato de deputado europeu. As três prioridades defendidas pela Iniciativa Liberal, na Europa, são o crescimento económico na União Europeia; o combate aos regimes autoritários; a fiscalização e desburocratização dos fundos europeus e do funcionamento da UE, em geral. Além destes temas, nesta entrevista o foco vai para a importância da inovação e competitividade na Europa e para o papel de Portugal, que João Cotrim de Figueiredo pensa que deve ser o de uma voz ponderada e lúcida, e para a importância das instituições europeias na liderança desta comunidade, num momento em que, considera, faz falta uma liderança forte e corajosa.

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Defendem a fiscalização da atribuição dos apoios europeus, bem como a monitorização da sua utilização?

Os temas relativos à fiscalização dos fundos e ao combate à corrupção estão intrinsecamente ligados. As minhas contas indicam mais de 160 mil milhões de euros a valores correntes recebidos dos fundos europeus desde 1986. A valores atuais este montante representa quase 100% do PIB português. Ora, nestas décadas, e com este dinheiro,
nota-se uma evolução infraestrutural grande, nomeadamente nas infraestruturas viárias, uma melhoria dos índices de educação e de saúde, mas não se nota um aumento de produtividade, sem o qual não haverá aumento de prosperidade. Nós tínhamos 76% da produtividade média europeia em 1995, temos hoje 74%. Baixámos a produtividade relativa. Alguma coisa está a falhar. E uma das coisas que está a falhar é a reprodutividade desses tais 160 mil milhões de euros que tivemos nestes cerca de 40 anos. Isso é algo que não pode continuar, até porque, a prazo, Portugal terá de se habituar a viver sem apoios da Europa. Toda a aplicação de fundos devia ter
como principal objetivo a preparação do país para poder viver sem eles. O exemplo que dou é o dos fundos do InvestEU. Estes fundos, e os planos de recuperação de cada país, estão muito mais dependentes de objetivos, que
são fixados à partida e medidos à chegada.

Mas essa questão está agora a causar constrangimentos, pelo menos em Portugal, na aplicação dos fundos, que está atrasada…

Há muitos outros países onde a aplicação também está atrasada. Há constrangimentos vários, de facto, e é provável que, nesta altura, os prazos de execução do PRR venham a ser protelados pela Europa. Acresce que, no caso português, e isso sim é um caso específico, a percentagem dos fundos do InvestEU que iam para entidades públicas é maior. Ora a centralização das decisões e o tempo de resposta é mais elevado, logo isso torna tudo bastante mais lento. Em parte, também, porque é conhecida a nossa tendência para a burocracia. Nós temos um hábito muito arreigado de fiscalizar a maior parte das coisas previamente e depois não há o mesmo esforço aplicado à fiscalização e monitorização dos resultados. Enquanto liberais, preferíamos a atitude inversa: confiar nas pessoas tanto quanto possível, reservar as fiscalizações prévias e tudo o que é absolutamente essencial para o início do projeto, e depois tudo o que são conformidade com regulamentos e regras que possam existir na construção, na exploração, na comercialização ou no emprego, tudo o que sejam matérias de execução, então deixá-las para a fase do acompanhamento.

Esta parece-lhe ser uma oportunidade única para que Portugal consiga tornar-se muito menos dependente dos fundos europeus futuros?

Era esse o objetivo, mas não acho que tenha sido esse o caminho. O objetivo é meritório, em primeiro lugar, porque é para isso que os fundos servem e, em segundo lugar, porque significava que tínhamos chegado ao nível
médio de riqueza dos nossos vizinhos europeus. Há ainda uma terceira razão: é que mais ano, menos ano, nós vamos ter mesmo de viver sem os fundos, porque os alargamentos da UE vão fazer com que os apoios que hoje existem sejam divididos por países que são mais pobres do que nós.

Desde que a China e os EUA reforçaram a sua posição enquanto economias competitivas, a Europa começou a perder terreno e não voltou a recuperar. Quando falamos nesta necessidade de ter uma Europa forte, que valha a pena, de que é que estamos a falar a nível económico?

O relatório Draghi dedica boa parte do conteúdo a tentar responder à pergunta: porque é que a Europa ficou para trás? E resume as conclusões a que chega no que chama “gap de inovação”. A diferença da capacidade inovadora da economia europeia comparada com as economias dos EUA e da China. Este relatório distingue o dinamismo intelectual das sociedades da sua capacidade de concretização e conclui que a Europa não tem um défice de
capacidade de geração de ideias, criatividade, mas tem um défice de capacidade de as concretizar, nomeadamente do ponto de vista da capacidade de financiamento das ideias que são geradas quer no ecossistema académico,
quer no ecossistema do empreendedorismo. A primeira conclusão que tiro daí é que temos de aproveitar aquilo que a Europa tem, que é uma capacidade de geração de poupança muito elevada, e criar a chamada “união de
poupança e investimento”, para permitir que uma boa ideia possa crescer e ser financiada pelo mercado das poupanças europeias. Mas também existem um conjunto de dificuldades no espaço europeu – desde logo a dificuldade relacionada com 27 ordenamentos jurídicos distintos, 27 línguas e organizações económicas com algumas diferenças. Para combater isso, em breve virá a discussão no Parlamento Europeu uma medida conhecida como o 28º regime jurídico comercial, que é uma figura jurídica de constituição de empresas que é válida nos 27 países. Relativamente aos investimentos, este relatório distingue três tipos: os investimentos que têm de ser feitos pelo Estado, como os investimentos em Defesa. A nossa capacidade de defesa é uma necessidade estratégica e soberana, por isso o investimento público é perfeitamente compaginável com uma visão liberal da sociedade. Da mesma maneira, é compaginável com uma sociedade liberal o investimento público em tudo o que são infraestruturas, dado que sendo possível trabalhar em conjunto com o setor privado, a urgência absoluta destes investimentos aconselha a um papel mais liderante do setor público. A terceira área é a mais empresarial, de
apoio ao investimento, e aí Draghi diz que o que deve existir é capacidade de investimento para que as boas ideias possam ver a luz do dia, sejam em que setor forem, sem ceder à tentação do protecionismo que se vai vendo
um pouco por outras geografias.

Tudo que acabou de dizer depende de uma harmonização de vontades de 27 países e que se está a tornar cada vez mais complicada. Este ceticismo que está a crescer à volta da ideia de Europa enquanto comunidade vai ser também uma grande dificuldade para concretizar tudo o que acabámos de falar?

Sim. A unidade política de propósito é, talvez, a pré-condição mais importante e também mais difícil em toda esta discussão. Mas mesmo os que são responsáveis, hoje, por aquilo que se tem vindo a designar por democracias iliberais, dependem da anuência da sua opinião pública. E as pessoas já não se lembram de como seriam as suas
sociedades sem a União Europeia. Portanto, uma desagregação da UE, que é, mais uma vez, algo que pode acontecer se nada fizermos, seria também um risco político enorme à escala nacional e mesmo nesses países que
acham que não precisam da UE para nada. O que eu espero é que a necessidade destas reformas que foram apontadas, e eventualmente outras, sejam vistas também por esses responsáveis políticos como uma absoluta necessidade. A Europa avançou sempre com base no ímpeto e no peso político de duas capitais – Paris e Bona (agora Berlim). Sem este eixo, e sem figuras, no espaço europeu – a meu ver – que tenham este tipo de coragem e de liderança – o impulso para avançar terá de vir das próprias instituições europeias, desde logo da Comissão Europeia. E é por isso que eu não fico particularmente infeliz com a estrutura da Comissão que Ursula von der Leyen montou, porque, de facto concentra poder, mas neste momento considero a necessidade de uma liderança forte na Europa tão importante que estou disponível para aceitar termos uma presidente da Comissão com poderes que poderíamos considerar, noutras circunstâncias, excessivos.