Vistos solidários: uma visão sem (qualquer) bondade

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As Autorizações de Residência para Investimento (ARI) – vulgarmente conhecidas como vistos gold (termo
pouco feliz, diga-se, mas que a realidade demonstrou ser o rótulo perfeito) – foram a porta de acesso privilegiado a Portugal durante mais de uma década para quem tivesse uns milhares de euros.

Segundo o extinto SEF, entre outubro de 2012 e setembro de 2023, foram concedidas 12718 Autorizações de Residência para Investimento, das quais 11385 por aquisição de imóveis. O investimento total no referido período (outubro de 2012 e setembro de 2023) atingiu os 7 318 438 201,77 mil milhões de euros, tendo a aquisição de imóveis logrado alcançar praticamente a totalidade com impressionantes 6 451 363 649,48 mil milhões de euros.
É impossível ignorar, face aos mapas estatísticos relativos às Autorizações de Residência para Investimento, que o mercado imobiliário em Portugal foi o terreno perfeito para a especulação: o preço de aquisição de um imóvel
em Lisboa ou Porto ficou ao alcance de poucos portugueses e o mercado do arrendamento agradece.

A crise na habitação e a conexa contestação social, bem como questões ligadas ao branqueamento de capitais, conduziu o poder legislativo a expurgar o investimento imobiliário do leque de possibilidades de obtenção de
autorização de residência, com a exceção dos imóveis adquiridos nesta modalidade de investimento que se destinem a habitação e se situem nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira ou nos territórios do interior
identificados no anexo à Portaria n.º 208/2017, de 13 de julho.

Esta alteração ditou [na prática] o fim dos chamados vistos gold: retirou-lhes a sua galinha dos ovos de ouro.

Recentemente, no dia 3 de junho de 2024, foi aprovado pelo Conselho de Ministros o Plano de Ação para as Migrações. Da leitura do Plano, destaca-se a 32.ª medida, onde se prevê a criação de um instrumento de canalização de capital privado para investimento social em projetos de integração de imigrantes. Simultaneamente, resulta da medida em apreço que “[e]sta extensão dos ARI acresce àquela prevista no “Construir Portugal” para investimento em habitação a custos controlados ou renda acessível”.

A 32.ª medida do referido plano impõe uma nova realidade destinada ao investimento social, no entanto não creio que seja acertado apelidá-la de “vistos solidários”. Falar de solidariedade e investimento é um binómio difícil. As Misericórdias, que são Misericórdias, cobram aos seus utentes uma mensalidade.

Os tipos de investimento no âmbito das tradicionais Autorizações de Residência para Investimento passam a ter novas modalidades, por forma a que sejam incluídos os “investimentos realizados em equipamentos e
infraestruturas de acolhimento, projetos de integração e apoio a imigrantes em situações de vulnerabilidade”, bem como os investimentos “em habitação a custos controlados ou renda acessível”.

O que na realidade acontece é que voltamos a ter o investimento imobiliário como forma de acesso (autorização de residência) privilegiado a Portugal, desta vez com uma máscara de solidariedade social.

Em termos legais, com a informação que atualmente existe, caraterizando-se estes vistos como uma nova modalidade de investimentos elegíveis para efeitos de atribuição de autorização de residência, a acrescer às já
previstas nas subalíneas da alínea d), do n.º 1, do artigo 3.º, da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho, é presumível que os critérios aos quais os investidores terão de corresponder para a sua obtenção serão os mesmo que atualmente são exigidos para as atividades de investimento já previstas na Lei em apreço.

Creio que o regime manter-se-á inalterado, apenas com a diferença de que serão aditadas novas formas de investimento que possibilitam a obtenção de Autorização de Residência para Investimento com preocupações sociais.

Esta nova forma de investimento, com exceção da sua índole solidária, não passa de mais uma modalidade de investimento elegível, a par de outras já existentes no artigo 3.º, n.º 1, alínea d), designadamente na subalínea v), que consiste na “[t]ransferência de capitais no montante igual ou superior a (euro) 500 000, que seja aplicado em atividades de investigação desenvolvidas por instituições públicas ou privadas de investigação
científica, integradas no sistema científico e tecnológico nacional”, bem como na subalínea vi), que permite a “[t]ransferência de capitais no montante igual ou superior a (euro) 250 000 euros, que seja aplicado em investimento ou apoio à produção artística, recuperação ou manutenção do património cultural nacional, através de serviços da administração direta central e periférica, institutos públicos, entidades que integram o setor público empresarial, fundações públicas, fundações privadas com estatuto de utilidade pública, entidades
intermunicipais, entidades que integram o setor empresarial local, entidades associativas municipais e associações públicas culturais, que prossigam atribuições na área da produção artística, recuperação ou manutenção do património cultural nacional”.

Uma vez mais, em termos de compliance – questão levantada anteriormente pela União Europeia relativamente aos primitivos vistos gold – o essencial será aferir a proveniência do dinheiro. Não creio que a proveniência do
dinheiro possa deixar de ser verificada com elevado grau de exigência, ainda que o fim seja a solidariedade social, sob pena de uma inestimável contribuição para o branqueamento de capitais e toda a atividade criminosa que está na sua génese.

Os chamados “vistos solidários” apenas terão atratividade em termos de investimento na pensada hipótese de “habitação a custos controlados ou renda acessível” – salvo a possibilidade de não serem a fundo perdido os
“investimentos realizados em equipamentos e infraestruturas de acolhimento, projetos de integração e apoio a imigrantes em situações de vulnerabilidade”.

Em termos de investimento, com os dados até agora disponíveis em termos de intenção legislativa, esta versão 2.0 dos vistos gold ficará muito aquém daquela outra em termos de captação de capital estrangeiro.

Por outro lado, não serão, certamente, os chamados “vistos solidários” a solução para os problemas de integração e acolhimento dos estrangeiros que chegam a Portugal. A questão da imigração é complexa e carece de remédios a montante, não se compadece com paliativos a jusante numa ótica de caridade social por investidores estrangeiros.